2005/02/01

Ensaio de Ezra Pound sobre Camões

 




capa da 2.ª edição


Camões

 Ezra Pound

 Introdução de Stephen Wilson

Tradução de Isabel Pedro dos Santos

Coimbra: Fenda Edições, 1980.

2.ª ed., 2005. - Posfácio de Stephen Wilson




"Camões escreve num estilo resplandescente e bombástico - que por vezes é poesia. A língua portuguesa, pouco musical, é subjugada, e os seus acordes dissonantes harmonizados. Como retórica colorida, Os Lusíadas dificilmente será ultrapassado, em minha opinião. O encanto deve-se ao vigor do autor, à sua unanimidade, à firme convicção da glória das coisas do mundo exterior - e há igualmente um certo prazer no contacto com o tipo de espírito de Camões, o espírito de um homem com suficiente entusiasmo para escrever um poema épico em dez Cantos sem nunca se deter em qualquer tipo de reflexão filosófica. Ele é o Rubens da poesia."


"A índole do pensamento de Camões é retórica, mas a sua dicção e técnica admiráveis. A beleza de Camões só será exactamente reproduzida em Inglês quando os tradutores deixarem de substituir as palavras portuguesas por palavras inglesas derivadas do mesmo étimo latino. A tradução de Camões para palavras de origem saxónica requereria um cuidado de dicção igual ao do autor e manteria o vigor do original."

Ezra Pound





Camões num ensaio de Ezra Pound

Carlos Cunha 

Em 1912, publicou Ezra Pound um livro de ensaios - Spirit of Romance - e, nele, um aguerrido estudo sobre Camões - homem com "bastante entusiasmo para escrever um poema épico em dez cantos sem fazer uma só pausa para qualquer espécie de reflexão filosófica". Se não podemos furtar o flanco à percuciente audácia de heresias como aquela que considera Camões "esplêndido e retórico" e, sob esse aspecto, Os Lusíadas "difíceis de superar", é-nos impossível, contudo, diante de afirmações e juízos que o conhecimento da lírica camoniana, especialmente dos sonetos e canções, não teria permitido, deixar de sentir uma certa insurreição lusíada...

Porque subestima Os Lusíadas "o épico de um segmento"? Porque vê no poeta "não uma força e sim um sintoma" da época? Porque o considera "o Rubens do verso"? Porque o acusa de barroco? Não. Tudo isso, afinal, pode estar certo, - mas tudo isso exorbita de uma análise serena.

Longe de pretendermos Camões atrás dessa cortina de mitos que guarda o poder dos "duces" e o prestígio dos poetas, e antes levados do desejo de ver a sua múltipla, inesgotável e singularíssima personalidade a uma luz desmitificadora e acerba, cumpre-nos, antes de mais, observar: Serão, na verdade, Os Lusíadas o épico de um segmento?

Enfeudado à ideologia da casta senhorial e guerreira que preparou os descobrimentos (embora orgulhoso, revel e, por conseguinte, capaz de gestos públicos de inconformismo), Camões parece ignorar o papel de povo que nas crónicas de Fernão Lopes assume relevância épica - nos grandes acontecimentos da vida da Nação. A sua concepção individualista da história, agravada de quase literal ausência de perspectiva (o épico não viu de longe o ciclo dos descobrimentos) que lhe permitisse colher, aureolados de lenda, os heróis da epopeia, originária, pela carência de "romanesco" e de ação, um problema a que o recurso a um maravilhoso ("a arrumação das divindades é uma sensaboria") já desmitificado e sem crédito ao tempo de Virgílio, apenas poderia oferecer uma solução de compromisso. Por este lado, Os Lusíadas se afiguram, com efeito, "o épico de um segmento"...

Mas há aqui uma desfocagem. "O Poeta não viveu - como adverte o Prof. Hernâni Cidade - nos tempos de Fernão Lopes. Em tal época - elucida - o importante não era Majestade, nem sequer Alteza: não passava de Mercê. A gradação semântica, através destes termos de tratamento, revela uma gradual exaltação de poder do monarca, cada vez mais identificado com a majestade augusta da Pátria. O fidalgo da casa real, que ele era, vivia numa atmosfera palaciana diferente da que envolvia aquele cronista nos paços medievos de D. Duarte, chefe de um povo que ainda se mantinha em plena democracia"1. Eis um ângulo em que teremos de colocar-nos se quisermos ver, em todas as suas incidências, o perfil do Poeta.

Contrapondo a experiência da observação direta ao cientismo livresco da antiguidade e da escolástica, a confiança do indivíduo em si próprio à despersonalização gregária da Idade Média, Os Lusíadas constituem, sem dúvida, a mais alta e fascinante expressão do Renascimento. E por isso, e ainda porque, como já foi notado, melhor que ninguém exprimiu aquele tipo de mentalidade que anuncia o empirismo científico de Bacon, temos de julgar Camões em relação ao espírito do seu tempo, se não uma força - pelo menos, o sintoma de uma força... Pois que, tal como de Rubens escreveu Taine, "a sua arte não é o efeito de uma causa fortuita, mas sim de um desenvolvimento geral".

Quanto ao barroquismo de Os Lusíadas, é inquestionável que, onde ao Poeta falta observação, a palavra extravasa. Camões é um grande, prodigioso realista. E a sua obra, no que tem de mais genuinamente poético, fruto de um doce e dilacerante convívio: o convívio com a realidade. Sequestrado da experiência, - disserta. Mas nem ele é "o Rubens do verso" (o Wagner, vá!), nem Os Lusíadas um poema de tal género. De resto, se "diction" quer dizer, no conceito da crítica inglesa, "escolha de palavras para expressar ideias", como, neste sentido, considerar "admirável" a dicção de um poeta barroco?

Vou repassando Os Lusíadas e pensando na volubilidade de uma crítica que se apoia em instigações de momento. Recorde-se que "Instigations" é justamente o título de um dos primeiros trabalhos de Pound. E recorde-se também o desacerto que provocou esta nota: que ao longo dos dez cantos do poema, se não vislumbra um momento de reflexão filosófica. Evidentemente que, ao contrário do "De Rerum Natura" de Lucrécio, se não faz aí a apologia ou enunciação de um sistema. Mas quantas reflexões filosóficas suspendendo ou detendo a tuba canora e belicosa!

Foi, se não nos enganamos, Alain quem apontou na escultura uma dimensão metafísica. E um vulto como o Adamastor, ali à entrada dos mares, - símbolo dos terrores pelágicos e das forças cegas da natureza, - tem, na realidade, qualquer coisa que ultrapassa a própria simbologia. De resto, se, como Ezra Pound, na sequência de Hegel, observou, "a poesia se relaciona muito mais estreitamente com o que há de melhor na música, na pintura e na escultura do que com qualquer parte da literatura que não vem a ser genuína poesia", quem esculpiu o Adamastor, aguarelou a tromba marinha e em ritmos numerosos apreendeu "a fala pouco musical" do seu país, não será, ao fim e ao cabo e independentemente de quaisquer preocupações filosofantes, - pelo menos, - superior a Longfellow?

E eis que outro, e não menos condenável deslize, se depara. Com efeito, depois de situar no mesmo plano a mentalidade do épico de Os Lusíadas e a do lírico do Massachusetts, Ezra Pound desaba nesta sentença lustral: "Largado num litoral áspero e fragoso, plantado num ambiente desinteressante, numa época sinistra, Camões teria revelado correspondente mediocridade".

Com todo o grande poeta coexiste sempre um grande crítico. E a verdade é que em Pound o crítico supera quase sempre o poeta - demasiado cerebrino, laboratorial e acústico (se bem que de enorme projeção na poética moderna)2. Como teria ele podido escrever isto? Pois não foi precisamente num "litoral áspero e fragoso" - "junto de um seco, duro, estéril monte", - que a alma do grande solitário se exorcismou nesse grito de imperecível angústia, que é a Canção X, - um dos mais altos voos da lírica universal?


Notas:
1 - Luís de Camões (Colec. "A obra e o homem", de Hernâni Cidade).
2 - Referindo-se à atividade crítica de Ezra Pound, Eliot considera-a "a mais importante da sua espécie em nossa época".

Carlos Cunha 

Camões num ensaio de Ezra Pound
Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 65-66.




Máscara de Dança “M'Bro” [representa um Bode], madeira, alt. 31 cm
Baoulé, Costa do Marfim. 
Foto de Mário Novais