2016/04/25

LUÍS DE CAMÕES, O MAIOR DOS PORTUGUESES - testemunho de Manuel Alegre


Manuel Alegre (1936-)
(c) Luiz Carvalho, 2013





"Neste dia em que se assinala a morte de Luís de Camões [10.06.2015], lembremos que com a sua obra, Camões fundou uma língua e, com ela, o cartão de identidade de todos nós.
Se outros fundaram o reino, a ele cabe a suprema glória de ter fundado a língua que falamos. Tanto basta para que ele seja para todo o sempre o maior dos portugueses, mesmo que tenha morrido na miséria e tenha sido enterrado como um cão à porta de uma igreja.
Deixo-vos excerto de “Com que pena” [do livro homónimo, 1992], poema em sua homenagem."


COM QUE PENA



Era ainda um léxico sibilante
um gutural murmúrio dis-
sonante. Diante da folha branca
Luís Vaz de Camões.
Ninguém sabe com
que pena com que
tinta em
que papel.
Ninguém saberá nunca
com que
letra.
E isso é como ter perdido
uma parte do nosso próprio rosto.

Era muito antes de Mallarmé escrever
que a forma chamada verso
é pura e simplesmente a literatura.
Muito antes das teses de Pound sobre a melopeia
e de Shelley ter dito que os poetas
são os ignorados legisladores da humanidade.
  
Talvez Camões soubesse que Dante di-
vi-
dia
as palavras consoante sua música.
Sabia por certo que o poeta é um fabbro 
(mais tarde Pound diria um versemaker
e João Cabral de Melo Neto – contra
a poesia bissexta e a teoria da inspiração –
poria o acento tónico no fazer
e no sentido profissional da literatura).

Era muito antes de a poesia ter entrado
em Portugal para a universidade.

Talvez soubesse o que mais tarde
Eliot havia de formular: a música
da poesia é a música latente do falar
corrente. A música latente do falar corrente
do país do poeta. E também
cacofonia dissonância prosaísmo
como parte da estrutura do poema.

Diante da folha branca
sentado na margem do Mandovi
em Goa. Ou talvez
junto de um seco estéril adverso verbo.

Então o com e o que
as sílabas mais ásperas e as rudes
consoantes puseram-se a cantar.
Alquimia – poderia dizer Rimbaud
muito mais tarde. Mas era
(segundo Pedro Nunes)
outro mar outro céu outras estrelas.
Da obscura substância de uma antiga prosódia
uma língua nascia.

E se alguém perguntasse como
não morria
tu dirias canção que
porque
poesia.

Manuel Alegre


Poema “Com que pena” do livro Com que pena: vinte poemas para Camões. Lisboa: Dom Quixote, 1992 / 2.ª ed., “revista”, Vinte poemas para Camões. Lisboa: Dom Quixote, 2016, pp. 25-27. – [Texto citado a partir da 2.ª ed.].



Fonte: Perfil do autor no Facebook, a 11.06.2015.