Jorge de Sena (1919-1978)
CAMÕES DIRIGE-SE AOS SEUS CONTEMPORÂNEOS
Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.
Jorge de Sena, Assis, 11.06.1961
In Metamorfoses. Lisboa: Morais Ed., 1963.
Reprod. em Poesia II. Lisboa: Moraes Editores, 1978
2.ª ed., Lisboa: Ed. 70, 1988, p. 93.
Reprod. em Poesia 1. Lisboa: Guimarães/Babel, 2013, p. 329.
Dir. literária de Alberto Ferreira
Gravado no Estúdio de Dep. da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara
Sonorização – Bernardino Pontes. Assistente musical – Mário Vieira de Carvalho
Guilda da Música/Sassetti, 1974, reed. CNM, 2011.