Visão de um cavaleiro, c. 1504, por Rafael. National Gallery, Londres. |
“Seja como for, parece-nos que a
esfinge camoniana cabe neste esquema: um fidalgo pobre, de família decaída, que
teve uma educação esmerada como os que se destinavam ao sacerdócio. Como tantos
outros que não conseguiam amesendar-se nas conezias ou nas abadias, na
administração da casa real, ou nas capitanias do ultramar, desceu todos os degraus
da miséria e achou-se agarrado pelas rodas que trituravam o homem pobre e
inadaptado, triste quixote que o moinho de vento atirou ao chão, mas que nunca
por isso perdeu as peneiras e os modos altaneiros.
Jamais foi capaz de compreender
que o mundo da cavalaria estava morrendo. Mas no meio de seu naufrágio
conservou o sentimento de quem era letrado, desses a quem competia entender e
explicar o mundo. Esta era a sua grande força. Embarcado numa expedição
militar, achava disponibilidade mental para escrever uma canção prodigiosa como
a que começa “Junto de um seco, duro, estéril monte”. “Numa mão sempre a pena e
noutra a espada”, tal foi, segundo as suas próprias palavras o seu ideal de
vida.
Camões foi, em resumo, um
cavaleiro-humanista, duas coisas perfeitamente inconciliáveis. Sob pena de não
percebermos nem a sua vida nem a sua obra, temos de unir essas duas máscaras,
que se negam uma à outra”.
António José Saraiva,
“As duas máscaras de Camões”,
in Para a história da cultura em Portugal, Vol. II,
3.ª ed., Lisboa:
Europa-América, 1972, 153.
[publicado originalmente
in Comércio do Porto, 14.10.1958.]
Fonte: Dossiê
temático-pedagógico sobre a figura e a obra d e António
José Saraiva (1917-1993),
MEC-DGE. Lisboa, 2014, 146.
MEC-DGE. Lisboa, 2014, 146.