2016/10/01

A mensagem de Camões é a dum novo humanismo - por Jaime Cortesão




Jaime Cortesão (1884-1960)

Se, pela forma, Os Lusíadas se prendem ao Renascimento greco-romano, pela substância, significado e alcance anunciam os Tempos Modernos. A mensagem de Camões é a dum novo humanismo.
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Que importa que o grave Vice-Rei [D. João de Castro] amasse os panejamentos majestosos da túnica dos cônsules, se, possuído pelo amor da Terra e da experiência, ele descobriu alguns dos segredos da Natureza, cuja revelação marca época na história das ciências?
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O Adamastor, por mais estranho que pareça, procede do amor camoniano da Mulher e da Natureza. Foi pelo amor da Mulher que o poeta chegou à humanização da Natureza e à materialização do homem.
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Sem o Camões filosofante, melhor diremos, místico, pois sobe do amor humano ao divino, pelo sofrimento, a renúncia e o êxtase, não teríamos as redondilhas sublimes Sobolos rios e, por forma geral, a parte transcendente da Lírica, em que o amor se debate no anseio da eternidade. Sem o Camões sensual e plástico, dotado de maravilhosos sentidos, que hiperagudamente vê, ouve e tateia as coisas e a vida, não teríamos criações como a Vénus do Canto II, a orgia voluptuosa da Ilha dos Amores, ou a parte da Lírica, em especial as Redondilhas, em que o poeta perde as asas e tange, com graciosa malícia, a siringe do fauno. E, ora o Poeta, pela sua inata e vigorosa capacidade de abstração, isola o eu sublime e atinge as expressões transcendentes do neoplatonismo cristão; ora isola o eu bruto e atormentado de apetites, o sátiro latente, e, servido pelo génio plástico, molda no barro crespo da língua latinizada, o gigante Adamastor, criatura feita de terra e tempestade.
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O platonismo foi, sim, em Camões um processo de elaboração e clarificação do pensamento para atingir um tema e uma expressão nova: o desdobramento da sua violenta e rica personalidade. A nosso ver, nesse desdobramento do eu e no drama entre os dois seres se esconde o segredo duma parte da Lírica, génese, por sua vez, do mito do Adamastor. O Sátiro-Anjo «cada um com seu contrário em um sujeito», que se debatia na consciência do poeta, ora se erguia no puro voo platónico das redondilhas Sobolos rios, para Deus; ora, e mais vezes, corria, num delírio de fogo e desespero, pelas selvas da Ilha dos Amores, atrás duma ninfa inatingível. Foi esse tormento dum desejo de amor, longamente malogrado, que fez de Camões, como ele próprio confessa, um Tântalo, multiplicado por Sísifo. A essa terrível e prolongada situação dum alto amor, divino e humano, contente por divino, mas malogrado e ofendido no humano, corresponde a experiência da materialização do eu amante e do ser amado, sobre os quais chora com desespero o duplo divino.

A experiência mística embora nele de essência poética, pois o êxtase e a revelação divina se confundiram com a inspiração, deve ter sazonado o espírito de Camões, como sazonou o de Fernão Mendes Pinto, para a transformação da ideia em símbolo.

Naquele momento sublime em que a pequena armada dobra o cabo e se estabelece o diálogo entre o Gama e o Gigante, uma era, a era estreita da humanidade fragmentária, é superada pelo Herói, ou melhor, os heróis, os Lusíadas. Dum humanismo, ou dos humanismos, fechados sobre si mesmos e que se alimentam do passado, os heróis passam a um novo humanismo, universalista e unitário, perenemente renovado pela ação, a liberdade e o amor. Ação descobridora de mundos terrestres e humanos que é amor do conhecimento; ação livremente aceita na plena consciência e liberdade de juízo; amor, continuamente ligado à ação e que leva à compreensão do Universo e a Deus. Mas ação, liberdade e amor completam-se. Cada um é o caminho do outro.

O génio do poeta transpôs, à luz do platonismo, para a história da Humanidade a experiência da sua própria história; arrancou das entranhas quer o gigante, quer o herói que o interpela; e superou o eu sensível e bruto, que transformou no Passado, pelo eu-razão divina, que alevanta com intuição profética à visão do Futuro. Mas é o Camões lusíada que, no rasto dos lusíadas, recolhe, pelo desdobramento do eu e a sua partilha no tempo, o eco do diálogo entre as duas eras.
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Tentar explicar exclusivamente Camões por Platão seria desconhecer a rica e diversa personalidade do Poeta, as raízes que o prendem à terra e à gente natal, a vivência que o levou a superar o platonismo, pela sua experiência aristotélica, e a partir da Lírica para a Épica. Platão teve uma compreensão demasiadamente intelectualista da vida. Camões, esse, criou com a totalidade do ser, com todas as virtudes da carne e da alma.

Ao filósofo grego «falta com frequência, diz Fouillée, o sentido da vida e da natureza, da vontade que é o fundo da própria vida e da própria natureza». Aqui está, a nosso ver, o que distingue essencialmente Camões de Platão. Camões tinha a intuição profunda da importância da vontade, diria Fouillée, mas nós preferimos dizer da liberdade criadora do homem, pela afirmação da vontade, verdadeira base da Epopeia. Neste aspecto, ele deu por seus pés o passo que vai de Platão a Aristóteles.
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Ao contrário de Platão, Camões, poeta da natureza, criou a poesia do Oceano; e o seu humanismo, a que chamamos de ação, de liberdade e de amor, faz do esforço generoso a condição da dignidade; de Amor o prémio do heroísmo, o fim da liberdade, a lei e o padrão supremo da Humanidade e da Natureza. Para Camões, com tão fundas raízes medievais, o Bem encarna numa galeria de individualidades heroicas, bem reais, amorosos Amadises, capazes das mais altas idealizações, mas solidamente arraigadas à terra.
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“No fundo, o descobridor molda-se pelo ideal da Cavalaria andante. Tornou-se um cavaleiro do mar. Pela boca do Adamastor rugem ou vociferam os dragões e gigantes que atalhavam o passo aos Amadises. Apenas o ideal dos novos cavaleiros se alargou. A Natureza é também um caminho para chegar a Deus. O herói pressente no fundo de sua ávida inquietação:
Que são grandes as cousas excelentesQue o mundo encobre aos homens imprudentes.
JAIME CORTESÃO


in O Humanismo universalista dos portugueses: a síntese histórica e literáriaLisboa: Portugália, 1965. – Col. Obras completas de Jaime Cortesão [p. 224-243].

Fonte: “Jaime Cortesão, 50 Anos depois”, in Cadernos de Filosofia Extravagante [blogue], 12.08.2010.