Desejei tanto uma vossa...
"Carta I. Mandada da Índia a um amigo" (1598)“Carta II, (Da Índia)" (H. Cidade, 1946, 4.ª ed. 1985)
Desejei tanto uma vossa, que cuido que pela muito desejar, a não vi. Porque este é o mais certo costume da fortuna, consentir que se deseje o que mais presto há de negar. Mas por que outras naus me não façam tamanha ofensa, como é fazerem-me suspeitar que vos não lembro; determinei de vos obrigar agora com esta: na qual pouco mais ou menos vereis o que quero que me escrevais dessa terra. Em pago do qual, de antemão vos pago com novas desta, que não serão más no fundo de uma arca para aviso de alguns aventureiros, que cuidão que todo o mato é orégãos, e não sabem que cá e lá más fadas há.
Despois que dessa terra parti, como quem o fazia para o outro mundo, mandei enforcar a quantas esperanças dera de comer até então, com pregão público por falsificadoras de moeda. E desenganei esses pensamentos que por casa trazia, por que em mim não ficasse pedra sobre pedra. E assim posto em estado que me não via senão por entre lusco e fusco, as derradeiras palavras que na nau disse foram as de Cipião Africano: “Ingrata pátria, non possidebis ossa mea”. Porque quando cuido que sem pecado, que me obrigasse a três dias de Purgatório, passei três mil de más línguas, piores tenções, danadas vontades, nascidas de pura enveja, de verem su amada yedra de si arrancada, y en otro muro asida, da qual também amizades mais brandas que cera se acendiam em ódios que demanda esperavam, e o lume que me deitava mais pingos na fama que nos couros de um leitão. Então ajuntou-se a isto acharem-me sempre na pele a virtude de Aquiles, que não podia ser cortado senão pelas solas dos pés, as quais de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos, e não enjeitar conversações da mesma impressão, a quem fracos punham mau nome, vingando com a língua o que não podiam com o braço. Enfim, Senhor, eu não sei com que me pague saber tão bem fugir a quantos laços nessa terra me armaram os acontecimentos, senão com me vir para esta, onde vivo mais venerado que os touros da Merciana, e mais quieto que a cela de um frade pregador.
Da terra vos sei dizer que é mãe de vilões ruins, e madrasta de homens honrados. Porque os que se cá lançam a buscar dinheiro, sempre se sustentam sobre a água com[o] bexigas. Mas os que sua opinião deita, a las armas, Mouriscote, como [a] maré corpos mortos à praia. Porque sabei que antes que amadureçam se secam. Já estes que tomavam esta opinião de valentes às costas, crede que nunca
Riberas del Duero arriba
Cabalgaron Zamoranos,
Que roncas de tal soberbia
Entre si fuesen hablando;
E quando vêm ao efeito da obra salvam-se com dizerem que se não podem fazer tamanhas duas cousas como é prometer e dar.
Informado disto, veio a esta terra João Toscano, que como se achava em algum magusto de rufiões verdadeiramente, que ali era su comer las carnes crudas, su beber la viva sangre. Calisto de Siqueira se veio cá mais humanamente, porque assim o prometeu em uma tormenta grande em que se viu. Mas um Manoel Serrão, que, sicut et nos, manqueja de um olho, se tem cá provado arrazoadamente. Porque fui tomado por juiz de certas palavras de que ele fez desdizer a um soldado, o qual pela postura de sua pessoa, era cá tido em boa conta.
Se das damas da terra quereis novas, as quais são obrigatórias a uma carta, como marinheiros à festa de São F[rei] Pero Gonçalves: sabei que as Portuguesas todas caem de maduras, que não há cabo que lhe tenha os pontos se lhe quiserem lançar pedaço. Pois as que a terra dá, além de serem de rala, fazei-me m[ercê] que lhe faleis alguns amores de Petrarca ou de Boscão; respondem-vos uma linguagem meada de ervilhaca, que trava na garganta do entendimento, a qual vos lança água na fervura da mor quentura do mundo. Ora julgai, Senhor, o que sentirá um estômago costumado a resistir às falsidades de um rostinho de tauxia de uma dama lisbonense, que chia como pucarinho novo com a água, vendo-se agora entre esta carne de selé que nenhum amor dá de si, como não chorará las memorias de in illo tempore? Por amor de mim, que às mulheres dessa terra digais de minha parte, que se querem absolutamente ter alçada com baraço e pregão, que não receiem seis meses de má vida por esse mar, que eu as espero, com procissão e pálio, revestido em pontifical, adonde estoutras senhoras lhe irão entregar as chaves da cidade, e reconhecerão toda a obediência a que por sua muita idade são já obrigadas.
Por agora não mais, senão que este Soneto que aqui vai, que fiz à morte de D. António de Noronha, vos mando em sinal de quanto dela me pesou. Uma écloga fiz sobre a mesma matéria, a qual também trata alguma cousa da morte do Príncipe, que me parece melhor que quantas fiz. Também vo-la mandara para a mostrardes lá a Miguel Diaz, que pela muita amizade de D. António folgaria de a ver, mas a ocupação de escrever muitas cartas para o Reino me não deu lugar. Também lá escrevo a Luís de Lemos, em resposta doutra que vi sua, se lha não deram, saiba que é culpa da viagem na qual tudo se perde. – Vale.
Em flor vos arrancou de então crescida
Ah, senhor Dom António, a dura sorte!
Donde fazendo andava o braço forte
A fama dos antigos esquecida.
Ũa só razão tenho conhecida
Com que tamanha mágoa se conforte;
Que pois no mundo havia honrada morte:
Que não podíeis ter mais larga vida.
Se meus humildes versos podem tanto
Que co engenho meu se iguale a arte,
Especial matéria me sereis.
E celebrado em triste e doce canto,
Se morrestes nas mãos do fero Marte,
Na memória das gentes vivereis.
Fonte:
1. Rimas / Luís de Camões. Lisboa, 1598, 191v-193v.
2. Carta II, in Autos e cartas / Luís de Camões. – Vol. III das Obras Completas, com pref. e notas do Prof. Hernâni Cidade. 4.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1985. [1.ª ed., 1946], p. 243-248.
3. Luís de Camões – Lírica Completa, ed. Maria de Lurdes Saraiva. Lisboa: INCM. – II Sonetos, 2.ª ed. revista, 1994, p. 250.