2020/08/22

Uma vossa me deram... – carta, de Lisboa a um seu amigo, de Luís de Camões


Imagem in: "Epistolário Camoniano" / Missiva.pt


Uma vossa me deram...

 

Uma vossa me deram, a qual pelo descostume me pôs em tamanho espanto, que me voltou o contentamento de saber novas de quem tanto desejo, mas com esta vos culpo do esquecimento que de mim tivestes, em me não escreverdes antes o que passa nessa boa Coimbra.

 

Entre algumas novas que na vossa me dais, vi que nela tratais mal a vida rústica, como são as águas claras, árvores sombrias, bosques saudosos, aves que cantam, e outras saudades de Bernaldim Ribeiro, quae vitam faciunt beatam. Não vos nego a enveja que delas vos tenho, e queixo-me do pouco conhecimento que delas tendes, pois me dizeis que já vos enfadam.

 

A troco destas novas eu vos darei outras, tão contrárias dessas, como vos esta carta dirá.

 

Primeiramente sabereis, que os homens vivem cá da mão do mundo, o que é despor cravos, ou rosas, ir ver a vinha se a rói a lagarta, rir das rústicas palavras dos pastores, festejar os seus amores não fingidos. E quem há de exercitar suas vidas de maneira que floresçam em boas obras, por que a lagarta das más línguas não roa as vidas alheias, trazem sempre as palavras aparadas para falarem com se prezarem disso, cousa que eu tenho por grande trabalho – andar a descrição pendurada em os amores fingidos, que os vossos pastores lá não usaram, porque vereis cá dama tão dama que, por o ser de muitos, que se a um mostra bom rosto, porque lhe quer bem, ao outro o não amostra ruim, por que lhe não queira mal. Estas digo que são como o Camaleão, que toma a cor de qualquer lugar em que o põem.

 

Derredor de cada uma destas vereis uma dúzia de parvos tão confiados, que cada um jurara que é o mais favorecido; um vereis encostado à espada com o sombreiro até os olhos, e a parvoíce até os geolhos, a cabeça entre os ombros, capa curta, as pernas compridas, nunca lhe falta uma conteira azulada que luz ao longe. Estes quando andam carregam nas pernas, e quando vão pelo sol, olham a sombra, e se se vêm bem dispostos, dizem que teve Narciso de se enamorar de si; têm o andar pausado, torcem os sapatos pera dentro; outros trazem sempre Boscão na mão, falam pouco, e tudo saudades, na conversação enfadonhos, pelo que cumpre a gravidade do amor. Nestes assim fazem as alcoviteiras seu ofício, e os esfolam, com palavras doces, e esperanças largas, recados falsos, hoje vos falam pela greta da porta, como me não falou, estava mal disposta, sentiu a sua mãe, porque esta é a isca com que Celestina apanhava las cien monedas a Calisto, com uma sobreinfusa.

 

Outras damas há cá, que ainda que não sejam letradas, são fermosas e menos trabalhosas, como são as Beatas de São Domingos, e outras que conversam os Apóstolos. Estas se queixam de viúvas honestas, ou de casadas, que têm seus maridos no Cabo Verde, e as por casar, e outras que andam fazendo devoção que lhes traga Deus seus maridos, de cuja vinda elas fogem, e nunca lhe[s] escapa as quartas-feiras a Santa Bárbora, sextas a Nossa Senhora do Monte, dias do Espírito Santo.

 

Umas dizem que jejuam a pão e água, outras a três folhas de oliveira, outras não comem cousa que padeça morte, e desta impressão são umas que fazem ir e vir uma nau à Índia em três dias; grandes capelos, hábitos de sarja, contas na mão, e o cu ladrão, porque debaixo disto, achareis mantéus debruados, gravins lavrados, gibões brancos e justos. Estas não se servem com músicas suaves nem vestidos lustrosos, nem com passeios, mas com peitas grosas, e cruzados amarelos, porque por dinero baila el perro, e palavras e plumas in vanum laborauerunt.

 

Os Cupidos destas não são uns capuzes frisados, e uns pelotes com petrinas ao olivel do embigo, e pantufos de veludo, estes medram por sesudos afora as custas, que também amassam neste forno frades de São Francisco, que andam com as calças desatacadas e lombos roliços, e dos de Santo Elói, que têm que dar, ainda que o doutor Martin Vaz do Casal afirma que frades andam anexos a mulheres fidalgas, pela conversação das confissões, mas eu digo que jogam de todas as armas, porque todos somos del merino.

 

E quanto ao que toca a outras damas de aluguer, há muitos que se servem delas, e dirão muitos, que como não há nestas mais que pagar e andar, que não pode haver engano neste jogo. Digo que é ao contrário, por que vereis estar um rosto, que fará luxuriosa a castidade de Lucrécia, uma testa de alabastro, uns olhos de mordifuge, nariz de manteiga, uma boquinha de púcaro de Estremoz, mas o pueri, latet... se vos disserem que estas pelam quem as tem, dizei-lhe que mentem, por que muitos vi eu que não tinham nada de seu, que agora andam a cavalo e mula.

 

E alguns que conheceis e vos eu direi novas, a Maria Caldeira matou-a seu marido, que foi grande perda pera o povo, que amparava muitas órfãs e adubava muitos pagodes de Lisboa, afora outras obras de grandes respeitos,E por que esta senhora não vivesse muito tempo no outro mundo sem cartas de cá, por que partiu dali a alguns dias para lá Beatriz da Mota, vossa amiga.

 

Deste dilúvio algumas damas havendo medo destas se acolheram, determinaram ficar na Torre de Babilónia, aonde se acolheram, em a qual vos certifico que são já tantas as linguagens que cedo cairá, porque ali achareis Mouros, Judeus, Castelhanos, frades, clérigos, casados, solteiros, moços e velhos, e de todas as sortes. A esta Torre chamam alguns a Goleta, pela fortaleza, mas o filósofo João de Melo lhe chamou o Rompeu, por ser de três paus, scilicet: Francisca Gomes a Surradeira, Isabel Tarifa, Antónia Brás, a bola é Maria da Rosa; eu a crismei daí a poucos dias, e lhe pus nome o Mal-cozinhado, porque sempre se acha ali de comer, mal ou bem, tudo é vianda.

 

Destas senhoras os rostos são novos e as camas são velhas. Digo eu, que são Ninfas de água, porque não deitam mais que a cabeça fora, e porque estas são mais em Lisboa que em outras partes, porque afora os seus rostinhos bonitos, chamam-lhe[s] cá patinhas folio[n]as, porque bailam e cantam bem, que não hão inveja aos que el-Rei mandou chamar, os pagodes que fazem estas são da Seita de Epicúrio, que punha sua bem-aventurança no comer e beber, mas digo eu que o faziam, porque estas não eram ainda vindas.

 

Nesta casa se acham continuamente muitos Cupidos valentes, aos quais por diversas alcunhas chamam Matadores, Matistas, Matantes, matarises, e outros nomes derivados destes, porque sempre os achareis com cascos, rodelas gladiis et fustibus como se Nosso Senhor outra vez houvera de padecer, porque eu não lhe acho outra desculpa, nem causa. Confesso-vos que estes me fazem fazer outro tanto. Estes na prática, dir-vos-ão mis arreos son las armas, mas eu sei vos dizer, que se

 

na paz mostram coração,

na guerra mostram as costas,

porque ali dizem que torce a porca o rabo.

 

Ora como vos parece, Senhor, que se pode viver entre estes, que não seja melhor essa vida que dizeis que vos enfada, e essa quietação branda, com dormir à sombra de uma árvore, ao tom da corrente de um rio, e ao canto dos passarinhos ouvindo sua doce harmonia, em braços com os Sonetos de Petrarca, e Éclogas de Vergílio, onde vedes aquilo que ledes?

 

Se vos a vós, Senhor, essa vida enfada, ainda a troco pela minha e vos tornarei o que for bem, e não vos esqueça de me escreverdes mais vezes que esta pois sabeis o gosto que tenho de ver cartas vossas, com novas da saúde dessa pessoa cujas mãos mil vezes beijo, Vale.

 

 

 

Fonte:

1.     [...]

2.     Cf. Carta III, in Autos e cartas / Luís de Camões. – Vol. III das Obras Completas, com pref. e notas do Prof. Hernâni Cidade. 4.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1985. [1.ª ed., 1946], p. 249-257.