Evocação de Camões e de Faria e Sousa
VÍTOR AGUIAR E SILVA
No seu exílio em Londres, o último Rei de Portugal, D. Manuel II, constituiu uma riquíssima biblioteca de livros antigos portugueses, dedicando atenção especial à aquisição de bibliografia camoniana. A biblioteca camoniana de D. Manuel II, homenagem admirável a Camões, à língua e à cultura portuguesas, está integrada no Museu-Biblioteca da Fundação da Casa de Bragança, no Paço Ducal de Vila Viçosa. Deve ser sublinhado que o Conselho de Administração da Fundação, que teve entre os seus Presidentes o Professor Marcelo Rebelo de Sousa, tem enriquecido o património legado por D. Manuel II, com a aquisição de relevantes espécies da bibliografia camoniana.
A Doutora Maria do Céu Fraga, professora da Universidade dos Açores e autora de notáveis estudos sobre Camões e sobre a literatura portuguesa do Renascimento e do Maneirismo, acaba de publicar um precioso livro intitulado Babel e Sião. Um manuscrito da Camoniana de D. Manuel II (Fundação da Casa de Bragança, 2021), no qual dá a conhecer, com sólido saber filológico e histórico-literário e com apurado sentido hermenêutico, um dos tesouros da Camoniana do último monarca português. Trata-se de um manuscrito autógrafo de Faria e Sousa (1590-1649), o inigualável comentador de Os Lusíadas (Madrid, 1639) e das Rimas varias (Lisboa, 1685 e 1689; edição póstuma levada a cabo por Pedro de Faria e Sousa, filho do célebre comentador). O manuscrito agora publicado constitui num caderno de trabalho do polígrafo seiscentista, um borrador que contém o comentário do poema «Sôbolos rios que vão» e um excurso sobre a história e a composição da redondilha como forma poética.
Fica-se assim a conhecer o comentário de Faria e Sousa a um dos grandes poemas da lírica camoniana, pois que a edição das Rimas varias não abrangeu a obra de Camões escrita na chamada medida velha. Com a sua vastíssima cultura literária, em sentido amplo, e com a sua prodigiosa memória textual, Faria e Sousa analisa minuciosamente e quase sempre com pertinência as relações intertextuais, no plano da forma e no plano do conteúdo, de «Sôbolos rios que vão» com textos gregos e latinos, medievais, renascentistas e maneiristas, demonstrando ao mesmo tempo a riqueza da poesia de Camões e a riqueza da cultura literária do seu comentador e intérprete. Mencionarei apenas um exemplo desta análise de relações intertextuais. Na décima vinte e oito – deixo suspenso o problema da composição em décimas ou em quintilhas do poema camoniano –, lê-se:
Ouça-me o pastor e o Rei,retumbe este acento santo,mova-se no mundo espanto;que do que já mal canteia palinódia já canto.
Faria e Sousa comenta assim o último verso:
«Quer dizer que dá o dito por não dito, isto é, que tendo cantado erros quer cantar acertos. O poeta Estesícoro escreveu contra Helena por ser causa da ruína de Tróia com a sua formosura; mas, aparecendo-lhe Castor e Pólux, cegaram-no por estes escritos e ele, tornando a desdizer-se, escreveu louvores de Helena e logo recuperou a sua vista: este foi o princípio disto a que se chama cantar a palinódia. Platão, no Fedr. : Palinodium cecimimus» (tradução de Maria do Céu Fraga).
O comentário de Faria e Sousa invoca pertinentemente o Fedro (243a-243b) de Platão, que Camões teria conhecido direta ou indiretamente. Costa Pimpão, que no início da década quarenta do século XX travou uma breve polémica com Vergílio Ferreira sobre o conhecimento que Camões terá tido de Platão, gostaria de ter conhecido o comentário de Faria e Sousa que corrobora o seu ponto de vista.
Faria e Sousa, o príncipe dos comentadores de Camões nas palavras de Lope de Veja, fonte inesgotável para todos os camonistas – mesmo para aqueles como Storck, Carolina Michaelis e Costa Pimpão que o exautoraram –, ainda não recebeu de Braga, cidade onde fez os primeiros estudos, o reconhecimento simbólico que justamente merece.
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