Episódios principais e outros trechos de Os Lusíadas
Índice das 35 passagens:
CANTO I
1. Proposição (I, 1-3)
2. Invocação às musas do Tejo (I, 4-5)
3. Dedicatória a El-Rei D. Sebastião (I, 6-18)
4. O Concílio dos Deuses no Olimpo (I, 19-42)
5. O “Bicho da Terra” (I, 105-106)
CANTO II
6. O rei de Melinde pede ao Gama que conte
a história do seu país e a sua navegação, (II, 109-113].
CANTO III
7. Invocação a Calíope (III, 1-2)
8. Início da narração do Gama (III, 3-5)
9. A “ditosa pátria” (III, 20-21)
10. A Formosíssima Maria (III, 102-106)
11. A Batalha do Salado (III, 107-115)
12. Inês de Castro (III, 118-135)
CANTO IV
13. A Batalha de Aljubarrota (IV, 28-45)
14. As despedidas em Belém (IV, 84-93)
15. A fala do Velho do Restelo (IV, 94-102)
CANTO V
16. A partida da armada de Lisboa (V, 1-3)
17. As “cousas do mar” (V, 16-17)
18. O fogo de santelmo e a tromba marítima (V, 18-22)
19. Fernão Veloso em terra (V, 31-36)
20. O Gigante Adamastor (I, 37-60)
21. O escorbuto (V, 81-83)
CANTO VI
22. O congresso dos deuses marítimos e a fala de Baco (VI, 16-37)
23. A tempestade (VI, 70-91)
24. A chegada à Índia (VI, 92-94)
25. A imortalidade (VI, 95-99)
CANTO VII
26. À vista da Índia (VII, 1-15)
27. A terceira invocação (VII, 78-82)
CANTO VIII
28. Explicação das figuras portuguesas representadas nas bandeiras (VIII, 1-43.]
CANTO IX
29. Vénus recompensa os portugueses (IX, 18-29)
30. A maravilhosa Ilha dos Amores (IX, 52-65)
31. O significado da Ilha dos Amores (IX, 88-91)
32. O caminho da imortalidade (IX, 92-95)
Canto X
1. O regresso a Lisboa (X, 142‐144)
2. “Não mais musa,…” – Camões despede-se da Musa e dirige-se a D. Sebastião (X, 145-146)
3. Considerações finais do Poeta sobre as letras e as armas (X, 154‐156)
1. Proposição (est. 1-3)
As armas e os Barões assinalados
Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;
2
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
3
Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Neptuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.
2. Invocação às musas do Tejo (I, 4-5)
Camões e as Tágides (1894), por Columbano Bordalo Pinheiro
E vós, Tágides minhas, pois criado
Tendes em mi um novo engenho ardente,
Se sempre em verso humilde celebrado
Foi de mi vosso rio alegremente,
Dai-me agora um som alto e sublimado,
Um estilo grandíloco e corrente,
Por que de vossas águas Febo ordene
Que não tenham enveja às de Hipocrene.
5
Dai-me ũa fúria grande e sonorosa,
E não de agreste avena ou frauta ruda,
Mas de tuba canora e belicosa,
Que o peito acende e a cor ao gesto muda;
Dai-me igual canto aos feitos da famosa
Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;
Que se espalhe e se cante no universo,
Se tão sublime preço cabe em verso.
3. Dedicatória a El-Rei D. Sebastião (I, 6-18)
6
E vós, ó bem nascida segurança
Da Lusitana antiga liberdade,
E não menos certíssima esperança
De aumento da pequena Cristandade;
Vós, ó novo temor da Maura lança,
Maravilha fatal da nossa idade,
Dada ao mundo por Deus, que todo o mande,
Pera do mundo a Deus dar parte grande;
7
Vós, tenro e novo ramo florecente
De ũa árvore, de Cristo mais amada
Que nenhua nascida no Ocidente,
Cesárea ou Cristianíssima chamada
(Vede-o no vosso escudo, que presente
Vos amostra a vitória já passada,
Na qual vos deu por armas e deixou
As que Ele pera si na Cruz tomou);
8
Vós, poderoso Rei, cujo alto Império
O Sol, logo em nascendo, vê primeiro,
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando dece o deixa derradeiro;
Vós, que esperamos jugo e vitupério
Do torpe Ismaelita cavaleiro,
Do Turco Oriental e do Gentio
Que inda bebe o licor do santo Rio:
9
Inclinai por um pouco a majestade
Que nesse tenro gesto vos contemplo,
Que já se mostra qual na inteira idade,
Quando subindo ireis ao eterno templo;
Os olhos da real benignidade
Ponde no chão: vereis um novo exemplo
De amor dos pátrios feitos valerosos,
Em versos divulgado numerosos.
10
Vereis amor da pátria, não movido
De prémio vil, mas alto e quási eterno;
Que não é prémio vil ser conhecido
Por um pregão do ninho meu paterno.
Ouvi: vereis o nome engrandecido
Daqueles de quem sois senhor superno,
E julgareis qual é mais excelente,
Se ser do mundo Rei, se de tal gente.
11
Ouvi, que não vereis com vãs façanhas,
Fantásticas, fingidas, mentirosas,
Louvar os vossos, como nas estranhas
Musas, de engrandecer-se desejosas:
As verdadeiras vossas são tamanhas
Que excedem as sonhadas, fabulosas,
Que excedem Rodamonte e o vão Rugeiro
E Orlando, inda que fora verdadeiro.
12
Por estes vos darei um Nuno fero,
Que fez ao Rei e ao Reino tal serviço,
Um Egas e um Dom Fuas, que de Homero
A cítara par' eles só cobiço;
Pois polos Doze Pares dar-vos quero
Os Doze de Inglaterra e o seu Magriço;
Dou-vos também aquele ilustre Gama,
Que para si de Eneias toma a fama.
13
Pois se a troco de Carlos, Rei de França,
Ou de César, quereis igual memória,
Vede o primeiro Afonso, cuja lança
Escura faz qualquer estranha glória;
E aquele que a seu Reino a segurança
Deixou, com a grande e próspera vitória;
Outro Joane, invicto cavaleiro;
O quarto e quinto Afonsos e o terceiro.
14
Nem deixarão meus versos esquecidos
Aqueles que nos Reinos lá da Aurora
Se fizeram por armas tão subidos,
Vossa bandeira sempre vencedora:
Um Pacheco fortíssimo e os temidos
Almeidas, por quem sempre o Tejo chora,
Albuquerque terríbil, Castro forte,
E outros em quem poder não teve a morte.
15
E, enquanto eu estes canto – e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto –,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que polo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras e do Oriente os mares.
16
Em vós os olhos tem o Mouro frio,
Em quem vê seu exício afigurado;
Só com vos ver, o bárbaro Gentio
Mostra o pescoço ao jugo já inclinado;
Tétis todo o cerúleo senhorio
Tem pera vós por dote aparelhado,
Que, afeiçoada ao gesto belo e tenro,
Deseja de comprar-vos pera genro.
17
Em vós se vêm, da Olímpica morada,
Dos dous avós as almas cá famosas;
Ũa, na paz angélica dourada,
Outra, pelas batalhas sanguinosas.
Em vós esperam ver-se renovada
Sua memória e obras valerosas;
E lá vos têm lugar, no fim da idade,
No templo da suprema Eternidade.
18
Mas, enquanto este tempo passa lento
De regerdes os povos, que o desejam,
Dai vós favor ao novo atrevimento,
Pera que estes meus versos vossos sejam,
E vereis ir cortando o salso argento
Os vossos Argonautas, por que vejam
Que são vistos de vós no mar irado,
E costumai-vos já a ser invocado.
4. O Concílio dos Deuses no Olimpo (I, 19-42].
Concílio dos Deuses, por Desenne
para a ed. de 1837, a do Morgado de Mateus.
19
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteu são cortadas,
20
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em consílio glorioso,
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu fermoso,
Vêm pela Via Láctea juntamente,
Convocados, da parte de Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.
21
Deixam dos sete Céus o regimento,
Que do poder mais alto lhe foi dado,
Alto poder, que só co pensamento
Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.
Ali se acharam juntos num momento
Os que habitam o Arcturo congelado
E os que o Austro têm e as partes onde
A Aurora nasce e o claro Sol se esconde.
22
Estava o Padre ali, sublime e dino,
Que vibra os feros raios de Vulcano,
Num assento de estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano;
Do rosto respirava um ar divino,
Que divino tornara um corpo humano;
Com ũa coroa e ceptro rutilante,
De outra pedra mais clara que diamante.
23
Em luzentes assentos, marchetados
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses, todos assentados
Como a Razão e a Ordem concertavam
(Precedem os antigos, mais honrados,
Mais abaixo os menores se assentavam);
Quando Júpiter alto, assi dizendo,
Cum tom de voz começa grave e horrendo:
24
– «Eternos moradores do luzente,
Estelífero Pólo e claro Assento:
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente
Como é dos Fados grandes certo intento
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
25
«Já lhe foi (bem o vistes) concedido,
Cum poder tão singelo e tão pequeno,
Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Toda a terra que rega o Tejo ameno.
Pois contra o Castelhano tão temido
Sempre alcançou favor do Céu sereno:
Assi que sempre, enfim, com fama e glória,
Teve os troféus pendentes da vitória.
26
«Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
Que co a gente de Rómulo alcançaram,
Quando com Viriato, na inimiga
Guerra Romana, tanto se afamaram;
Também deixo a memória que os obriga
A grande nome, quando alevantaram
Um por seu capitão, que, peregrino,
Fingiu na cerva espírito divino.
27
«Agora vedes bem que, cometendo
O duvidoso mar num lenho leve,
Por vias nunca usadas, não temendo
de Áfrico e Noto a força, a mais s'atreve:
Que, havendo tanto já que as partes vendo
Onde o dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e perfilha
A ver os berços onde nasce o dia.
28
«Prometido lhe está do Fado eterno,
Cuja alta lei não pode ser quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar que vê do Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro Inverno;
A gente vem perdida e trabalhada;
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra que deseja.
29
«E porque, como vistes, têm passados
Na viagem tão ásperos perigos,
Tantos climas e céus exprimentados,
Tanto furor de ventos inimigos,
Que sejam, determino, agasalhados
Nesta costa Africana como amigos;
E, tendo guarnecido a lassa frota,
Tornarão a seguir sua longa rota.»
30
Estas palavras Júpiter dizia,
Quando os Deuses, por ordem respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões diversas dando e recebendo.
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente
Se lá passar a Lusitana gente.
31
Ouvido tinha aos Fados que viria
Ũa gente fortíssima de Espanha
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da Índia tudo quanto Dóris banha,
E com novas vitórias venceria
A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Altamente lhe dói perder a glória
De que Nisa celebra inda a memória.
32
Vê que já teve o Indo sojugado
E nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Por vencedor da Índia ser cantado
De quantos bebem a água de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão célebre nome em negro vaso
D' água do esquecimento, se lá chegam
Os fortes Portugueses que navegam.
33
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
34
Estas causas moviam Citereia,
E mais, porque das Parcas claro entende
Que há de ser celebrada a clara Deia
Onde a gente belígera se estende.
Assi que, um, pela infâmia que arreceia,
E o outro, pelas honras que pretende,
Debatem, e na perfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.
35
Qual Austro fero ou Bóreas na espessura
De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura
Com ímpeto e braveza desmedida,
Brama toda montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto, levantado
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.
36
Mas Marte, que da Deusa sustentava
Entre todos as partes em porfia,
Ou porque o amor antigo o obrigava,
Ou porque a gente forte o merecia,
De antre os Deuses em pé se levantava:
erencório no gesto parecia;
O forte escudo, ao colo pendurado,
Deitando pera trás, medonho e irado;
37
A viseira do elmo de diamante
Alevantando um pouco, mui seguro,
Por dar seu parecer se pôs diante
De Júpiter, armado, forte e duro;
E dando ũa pancada penetrante
Co conto do bastão no sólio puro,
O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
Um pouco a luz perdeu, como enfiado;
38
disse assi: – «Ó Padre, a cujo império
Tudo aquilo obedece que criaste:
Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já tanto tempo que ordenaste,
Não ouças mais, pois és juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.
39
«Que, se aqui a razão se não mostrasse
Vencida do temor demasiado,
Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois que de Luso vêm, seu tão privado;
Mas esta tenção sua agora passe,
Porque enfim vem de estâmago danado;
Que nunca tirará alheia enveja
O bem que outrem merece e o Céu deseja.
40
«E tu, Padre de grande fortaleza,
Da determinação que tens tomada
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
Mercúrio, pois excede em ligeireza
Ao vento leve e à seta bem talhada,
Lhe vá mostrar a terra onde se informe
Da Índia, e onde a gente se reforme.»
41
Como isto disse, o Padre poderoso,
A cabeça inclinando, consentiu
No que disse Mavorte valeroso
E néctar sobre todos esparziu.
Pelo caminho Lácteo glorioso
Logo cada um dos Deuses se partiu,
Fazendo seus reais acatamentos,
Pera os determinados apousentos.
42
Enquanto isto se passa na fermosa
Casa etérea do Olimpo omnipotente,
Cortava o mar a gente belicosa
Já lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre a costa Etiópica e a famosa
Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
Queimava então os Deuses que Tifeu
Co temor grande em pexes converteu.
105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaxo o veneno vem coberto,
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente põe sua esperanç
Tenha a vida tão pouca segurança!
106
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?
109
– «Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta (lhe dizia), diligente,
Da terra tua o clima e região
Do mundo onde morais, distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Cos sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço;
110
«E assi também nos conta dos rodeios
Longos em que te traz o Mar irado,
Vendo os costumes bárbaros, alheios,
Que a nossa África ruda tem criado;
Conta, que agora vêm cos áureos freios
Os cavalos que o carro marchetado
Do novo Sol, da fria Aurora trazem;
O vento dorme, o mar e as ondas jazem.
111
«E não menos co tempo se parece
O desejo de ouvir-te o que contares;
Que quem há que por fama não conhece
As obras Portuguesas singulares?
Não tanto desviado resplandece
De nós o claro Sol, pera julgares
Que os Melindanos têm tão rudo peito
Que não estimem muito um grande feito.
112
«Cometeram soberbos os Gigantes,
Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou Perito e Teseu, de ignorantes,
O Reino de Plutão, horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos é trabalho ilustre e duro,
Quanto foi cometer Inferno e Céu,
Que outrem cometa a fúria de Nereu.
113
«Queimou o sagrado templo de Diana,
Do sutil Tesifónio fabricado,
Heróstrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo e nomeado.
Se também com tais obras nos engana
O desejo de um nome avantajado,
Mais razão há que queira eterna glória
Quem faz obras tão dinas de memória.»
Já no largo Oceano navegavam,
As inquietas ondas apartando;
Os ventos brandamente respiravam,
Das naus as velas côncavas inchando;
Da branca escuma os mares se mostravam
Cobertos, onde as proas vão cortando
As marítimas águas consagradas,
Que do gado de Próteu são cortadas,
20
Quando os Deuses no Olimpo luminoso,
Onde o governo está da humana gente,
Se ajuntam em consílio glorioso,
Sobre as cousas futuras do Oriente.
Pisando o cristalino Céu fermoso,
Vêm pela Via Láctea juntamente,
Convocados, da parte de Tonante,
Pelo neto gentil do velho Atlante.
21
Deixam dos sete Céus o regimento,
Que do poder mais alto lhe foi dado,
Alto poder, que só co pensamento
Governa o Céu, a Terra e o Mar irado.
Ali se acharam juntos num momento
Os que habitam o Arcturo congelado
E os que o Austro têm e as partes onde
A Aurora nasce e o claro Sol se esconde.
22
Estava o Padre ali, sublime e dino,
Que vibra os feros raios de Vulcano,
Num assento de estrelas cristalino,
Com gesto alto, severo e soberano;
Do rosto respirava um ar divino,
Que divino tornara um corpo humano;
Com ũa coroa e ceptro rutilante,
De outra pedra mais clara que diamante.
23
Em luzentes assentos, marchetados
De ouro e de perlas, mais abaixo estavam
Os outros Deuses, todos assentados
Como a Razão e a Ordem concertavam
(Precedem os antigos, mais honrados,
Mais abaixo os menores se assentavam);
Quando Júpiter alto, assi dizendo,
Cum tom de voz começa grave e horrendo:
24
– «Eternos moradores do luzente,
Estelífero Pólo e claro Assento:
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente
Como é dos Fados grandes certo intento
Que por ela se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos.
25
«Já lhe foi (bem o vistes) concedido,
Cum poder tão singelo e tão pequeno,
Tomar ao Mouro forte e guarnecido
Toda a terra que rega o Tejo ameno.
Pois contra o Castelhano tão temido
Sempre alcançou favor do Céu sereno:
Assi que sempre, enfim, com fama e glória,
Teve os troféus pendentes da vitória.
26
«Deixo, Deuses, atrás a fama antiga,
Que co a gente de Rómulo alcançaram,
Quando com Viriato, na inimiga
Guerra Romana, tanto se afamaram;
Também deixo a memória que os obriga
A grande nome, quando alevantaram
Um por seu capitão, que, peregrino,
Fingiu na cerva espírito divino.
27
«Agora vedes bem que, cometendo
O duvidoso mar num lenho leve,
Por vias nunca usadas, não temendo
de Áfrico e Noto a força, a mais s'atreve:
Que, havendo tanto já que as partes vendo
Onde o dia é comprido e onde breve,
Inclinam seu propósito e perfilha
A ver os berços onde nasce o dia.
28
«Prometido lhe está do Fado eterno,
Cuja alta lei não pode ser quebrada,
Que tenham longos tempos o governo
Do mar que vê do Sol a roxa entrada.
Nas águas têm passado o duro Inverno;
A gente vem perdida e trabalhada;
Já parece bem feito que lhe seja
Mostrada a nova terra que deseja.
29
«E porque, como vistes, têm passados
Na viagem tão ásperos perigos,
Tantos climas e céus exprimentados,
Tanto furor de ventos inimigos,
Que sejam, determino, agasalhados
Nesta costa Africana como amigos;
E, tendo guarnecido a lassa frota,
Tornarão a seguir sua longa rota.»
30
Estas palavras Júpiter dizia,
Quando os Deuses, por ordem respondendo,
Na sentença um do outro diferia,
Razões diversas dando e recebendo.
O padre Baco ali não consentia
No que Júpiter disse, conhecendo
Que esquecerão seus feitos no Oriente
Se lá passar a Lusitana gente.
31
Ouvido tinha aos Fados que viria
Ũa gente fortíssima de Espanha
Pelo mar alto, a qual sujeitaria
Da Índia tudo quanto Dóris banha,
E com novas vitórias venceria
A fama antiga, ou sua ou fosse estranha.
Altamente lhe dói perder a glória
De que Nisa celebra inda a memória.
32
Vê que já teve o Indo sojugado
E nunca lhe tirou Fortuna ou caso
Por vencedor da Índia ser cantado
De quantos bebem a água de Parnaso.
Teme agora que seja sepultado
Seu tão célebre nome em negro vaso
D' água do esquecimento, se lá chegam
Os fortes Portugueses que navegam.
33
Sustentava contra ele Vénus bela,
Afeiçoada à gente Lusitana
Por quantas qualidades via nela
Da antiga, tão amada, sua Romana;
Nos fortes corações, na grande estrela
Que mostraram na terra Tingitana,
E na língua, na qual quando imagina,
Com pouca corrupção crê que é a Latina.
34
Estas causas moviam Citereia,
E mais, porque das Parcas claro entende
Que há de ser celebrada a clara Deia
Onde a gente belígera se estende.
Assi que, um, pela infâmia que arreceia,
E o outro, pelas honras que pretende,
Debatem, e na perfia permanecem;
A qualquer seus amigos favorecem.
35
Qual Austro fero ou Bóreas na espessura
De silvestre arvoredo abastecida,
Rompendo os ramos vão da mata escura
Com ímpeto e braveza desmedida,
Brama toda montanha, o som murmura,
Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida:
Tal andava o tumulto, levantado
Entre os Deuses, no Olimpo consagrado.
36
Mas Marte, que da Deusa sustentava
Entre todos as partes em porfia,
Ou porque o amor antigo o obrigava,
Ou porque a gente forte o merecia,
De antre os Deuses em pé se levantava:
erencório no gesto parecia;
O forte escudo, ao colo pendurado,
Deitando pera trás, medonho e irado;
37
A viseira do elmo de diamante
Alevantando um pouco, mui seguro,
Por dar seu parecer se pôs diante
De Júpiter, armado, forte e duro;
E dando ũa pancada penetrante
Co conto do bastão no sólio puro,
O Céu tremeu, e Apolo, de torvado,
Um pouco a luz perdeu, como enfiado;
38
disse assi: – «Ó Padre, a cujo império
Tudo aquilo obedece que criaste:
Se esta gente que busca outro Hemisfério,
Cuja valia e obras tanto amaste,
Não queres que padeçam vitupério,
Como há já tanto tempo que ordenaste,
Não ouças mais, pois és juiz direito,
Razões de quem parece que é suspeito.
39
«Que, se aqui a razão se não mostrasse
Vencida do temor demasiado,
Bem fora que aqui Baco os sustentasse,
Pois que de Luso vêm, seu tão privado;
Mas esta tenção sua agora passe,
Porque enfim vem de estâmago danado;
Que nunca tirará alheia enveja
O bem que outrem merece e o Céu deseja.
40
«E tu, Padre de grande fortaleza,
Da determinação que tens tomada
Não tornes por detrás, pois é fraqueza
Desistir-se da cousa começada.
Mercúrio, pois excede em ligeireza
Ao vento leve e à seta bem talhada,
Lhe vá mostrar a terra onde se informe
Da Índia, e onde a gente se reforme.»
41
Como isto disse, o Padre poderoso,
A cabeça inclinando, consentiu
No que disse Mavorte valeroso
E néctar sobre todos esparziu.
Pelo caminho Lácteo glorioso
Logo cada um dos Deuses se partiu,
Fazendo seus reais acatamentos,
Pera os determinados apousentos.
42
Enquanto isto se passa na fermosa
Casa etérea do Olimpo omnipotente,
Cortava o mar a gente belicosa
Já lá da banda do Austro e do Oriente,
Entre a costa Etiópica e a famosa
Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente
Queimava então os Deuses que Tifeu
Co temor grande em pexes converteu.
5. O “Bicho da Terra" (I, 105-106)
Ilustração realizada em 1974 por Carlos Alberto Santos
105
O recado que trazem é de amigos,
Mas debaxo o veneno vem coberto,
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente põe sua esperanç
Tenha a vida tão pouca segurança!
106
No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
contra um bicho da terra tão pequeno?
6. O rei de Melinde pede ao Gama que conte a história do seu país e a sua navegação, (II, 109-113].
Recriação a cores no Centro Cultural Português de Santos, Brasil
a partir do desenho de Fragonard para a ed. de 1837, a do Morgado de Mateus.
109
– «Mas antes, valeroso Capitão,
Nos conta (lhe dizia), diligente,
Da terra tua o clima e região
Do mundo onde morais, distintamente;
E assi de vossa antiga geração,
E o princípio do Reino tão potente,
Cos sucessos das guerras do começo,
Que, sem sabê-las, sei que são de preço;
110
«E assi também nos conta dos rodeios
Longos em que te traz o Mar irado,
Vendo os costumes bárbaros, alheios,
Que a nossa África ruda tem criado;
Conta, que agora vêm cos áureos freios
Os cavalos que o carro marchetado
Do novo Sol, da fria Aurora trazem;
O vento dorme, o mar e as ondas jazem.
111
«E não menos co tempo se parece
O desejo de ouvir-te o que contares;
Que quem há que por fama não conhece
As obras Portuguesas singulares?
Não tanto desviado resplandece
De nós o claro Sol, pera julgares
Que os Melindanos têm tão rudo peito
Que não estimem muito um grande feito.
112
«Cometeram soberbos os Gigantes,
Com guerra vã, o Olimpo claro e puro;
Tentou Perito e Teseu, de ignorantes,
O Reino de Plutão, horrendo e escuro.
Se houve feitos no mundo tão possantes,
Não menos é trabalho ilustre e duro,
Quanto foi cometer Inferno e Céu,
Que outrem cometa a fúria de Nereu.
113
«Queimou o sagrado templo de Diana,
Do sutil Tesifónio fabricado,
Heróstrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo e nomeado.
Se também com tais obras nos engana
O desejo de um nome avantajado,
Mais razão há que queira eterna glória
Quem faz obras tão dinas de memória.»
7. Invocação a Calíope (III, 1-2)
Calíope, musa da poesia épica (1634, pormenor)
por Simon Vouet.
1
AGORA tu, Calíope, me ensina
O que contou ao Rei o ilustre Gama;
Inspira imortal canto e voz divina
Neste peito mortal, que tanto te ama.
Assi o claro inventor da Medicina,
De quem Orfeu pariste, ó linda Dama,
Nunca por Dafne, Clície ou Leucotoe,
Te negue o amor devido, como soe.
2
Põe tu, Ninfa, em efeito meu desejo,
Como merece a gente Lusitana;
Que veja e saiba o mundo que do Tejo
O licor de Aganipe corre e mana.
Deixa as flores de Pindo, que já vejo
Banhar-me Apolo na água soberana;
Senão direi que tens algum receio
Que se escureça o teu querido Orfeio.
8. Início da narração do Gama (III, est. 3-5)
3Prontos estavam todos escuitando
O que o sublime Gama contaria,
Quando, despois de um pouco estar cuidando,
Alevantando o rosto, assi dizia:
– «Mandas-me, ó Rei, que conte declarando
De minha gente a grão genealogia;
Não me mandas contar estranha história,
Mas mandas-me louvar dos meus a glória.
4
«Que outrem possa louvar esforço alheio,
Cousa é que se costuma e se deseja
Mas louvar os meus próprios, arreceio
Que louvor tão suspeito mal me esteja;
E, pera dizer tudo, temo e creio
Que qualquer longo tempo curto seja;
Mas, pois o mandas, tudo se te deve;
Irei contra o que devo, e serei breve.
5
«Além disso, o que a tudo enfim me obriga
É não poder mentir no que disser,
Porque de feitos tais, por mais que diga,
Mais me há de ficar inda por dizer.
Mas, porque nisto a ordem leve e siga,
Segundo o que desejas de saber,
Primeiro tratarei da larga terra,
Despois direi da sanguinosa guerra.
9. A “ditosa pátria” (III, 20-21)
Mapa da Europa como Rainha, coroada por Espanha
in Sebastião Münster, Cosmographey, Basileia, 1588.
20
«Eis aqui, quási cume da cabeça
De Europa toda, o Reino Lusitano,
Onde a terra se acaba e o mar começa
E onde Febo repousa no Oceano.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.
21
«Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antão os íncolas primeiros.
102
«Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em lágrimas banhados;
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados.
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:
103
– «Quantos povos a terra produziu
De África toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduziu
Pera vir possuir a nobre Espanha:
Poder tamanho junto não se viu
Despois que o salso mar a terra banha;
Trazem ferocidade e furor tanto
Que a vivos medo e a mortos faz espanto!
104
«Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada;
E, se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;
Viúva e triste e posta em vida escura,
Sem marido, sem Reino e sem ventura.
105«Portanto, ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança, acude cedo
À miseranda gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor assela,
Acude e corre, pai, que, se não corres,
Pode ser que não aches quem socorres.»
106
«Não de outra sorte a tímida Maria
Falando está que a triste Vénus, quando
A Júpiter, seu pai, favor pedia
Pera Eneias, seu filho, navegando;
Que a tanta piedade o comovia
Que, caído das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.
Este quis o Céu justo que floreça
Nas armas contra o torpe Mauritano,
Deitando-o de si fora; e lá na ardente
África estar quieto o não consente.
21
«Esta é a ditosa pátria minha amada,
À qual se o Céu me dá que eu sem perigo
Torne, com esta empresa já acabada,
Acabe-se esta luz ali comigo.
Esta foi Lusitânia, derivada
De Luso ou Lisa, que de Baco antigo
Filhos foram, parece, ou companheiros,
E nela antão os íncolas primeiros.
10. A Formosíssima Maria (III, 102-106)
D. Maria de Portugal (1313-1357), rainha de Castela.
«Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em lágrimas banhados;
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados.
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:
103
– «Quantos povos a terra produziu
De África toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduziu
Pera vir possuir a nobre Espanha:
Poder tamanho junto não se viu
Despois que o salso mar a terra banha;
Trazem ferocidade e furor tanto
Que a vivos medo e a mortos faz espanto!
104
«Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada;
E, se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;
Viúva e triste e posta em vida escura,
Sem marido, sem Reino e sem ventura.
105«Portanto, ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança, acude cedo
À miseranda gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor assela,
Acude e corre, pai, que, se não corres,
Pode ser que não aches quem socorres.»
106
«Não de outra sorte a tímida Maria
Falando está que a triste Vénus, quando
A Júpiter, seu pai, favor pedia
Pera Eneias, seu filho, navegando;
Que a tanta piedade o comovia
Que, caído das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.
11. A Batalha do Salado (III, 107-115)
autor desconhecido do séc. XVII.
107
«Mas já cos esquadrões da gente armada
Os Eborenses campos vão coalhados;
Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada;
Vão rinchando os cavalos jaezados;
A canora trombeta embandeirada
Os corações, à paz acostumados,
Vai às fulgentes armas incitando,
Polas concavidades retumbando.
108
«Entre todos no meio se sublima
Das insígnias Reais acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o colo alevantado,
E somente co gesto esforça e anima
A qualquer coração amedrontado.
Assi entra nas terras de Castela
Com a filha gentil, Rainha dela.
109
«Juntos os dous Afonsos, finalmente
Nos campos de Tarifa estão defronte
Da grande multidão da cega gente,
Pera quem são pequenos campo e monte.
Não há peito tão alto e tão potente
Que de desconfiança não se afronte,
Enquanto não conheça e claro veja
Que co braço dos seus Cristo peleja.
110
«Estão de Agar os netos quási rindo
Do poder dos Cristãos, fraco e pequeno,
As terras como suas repartindo,
Antemão, entre o exército Agareno,
Que, com título falso, possuindo
Está o famoso nome Sarraceno.
Assi também, com falsa conta e nua,
À nobre terra alheia chamam sua.
111
«Qual o membrudo e bárbaro Gigante,
Do Rei Saul, com causa tão temido,
Vendo o Pastor inerme estar diante,
Só de pedras e esforço apercebido,
Com palavras soberbas, o arrogante,
Despreza o fraco moço mal vestido,
Que, rodeando a funda, o desengana
(Quanto mais pode a Fé que a força humana!)
112
«Destarte o Mouro pérfido despreza
O poder dos Cristãos, e não entende
Que está ajudado da alta Fortaleza
A quem o Inferno horrífico se rende.
Co ela o Castelhano, e com destreza,
De Marrocos o Rei comete e ofende;
O Português, que tudo estima em nada,
Se faz temer ao Reino de Granada.
113
«Eis as lanças e espadas retiniam
Por cima dos arneses – bravo estrago! –;
Chamam (segundo as Leis que ali seguiam),
Uns Mafamede e os outros Santiago.
Os feridos com grita o céu feriam,
Fazendo de seu sangue bruto lago,
Onde outros, meios mortos, se afogavam,
Quando do ferro as vidas escapavam.
114
«Com esforço tamanho estrui e mata
O Luso ao Granadil, que em pouco espaço
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe valer defesa ou peito de aço.
De alcançar tal vitória tão barata
Inda não bem contente o forte braço,
Vai ajudar ao bravo Castelhano,
Que pelejando está co Mauritano.
115
«Já se ia o Sol ardente recolhendo
Pera a casa de Tétis, e inclinado
Pera, o Ponente, o véspero trazendo,
Estava o claro dia memorado,
Quando o poder do Mauro, grande e horrendo,
Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortindade que a memória
Nunca no mundo viu tão grão vitória.
«Mas já cos esquadrões da gente armada
Os Eborenses campos vão coalhados;
Lustra co Sol o arnês, a lança, a espada;
Vão rinchando os cavalos jaezados;
A canora trombeta embandeirada
Os corações, à paz acostumados,
Vai às fulgentes armas incitando,
Polas concavidades retumbando.
108
«Entre todos no meio se sublima
Das insígnias Reais acompanhado,
O valeroso Afonso, que por cima
De todos leva o colo alevantado,
E somente co gesto esforça e anima
A qualquer coração amedrontado.
Assi entra nas terras de Castela
Com a filha gentil, Rainha dela.
109
«Juntos os dous Afonsos, finalmente
Nos campos de Tarifa estão defronte
Da grande multidão da cega gente,
Pera quem são pequenos campo e monte.
Não há peito tão alto e tão potente
Que de desconfiança não se afronte,
Enquanto não conheça e claro veja
Que co braço dos seus Cristo peleja.
110
«Estão de Agar os netos quási rindo
Do poder dos Cristãos, fraco e pequeno,
As terras como suas repartindo,
Antemão, entre o exército Agareno,
Que, com título falso, possuindo
Está o famoso nome Sarraceno.
Assi também, com falsa conta e nua,
À nobre terra alheia chamam sua.
111
«Qual o membrudo e bárbaro Gigante,
Do Rei Saul, com causa tão temido,
Vendo o Pastor inerme estar diante,
Só de pedras e esforço apercebido,
Com palavras soberbas, o arrogante,
Despreza o fraco moço mal vestido,
Que, rodeando a funda, o desengana
(Quanto mais pode a Fé que a força humana!)
112
«Destarte o Mouro pérfido despreza
O poder dos Cristãos, e não entende
Que está ajudado da alta Fortaleza
A quem o Inferno horrífico se rende.
Co ela o Castelhano, e com destreza,
De Marrocos o Rei comete e ofende;
O Português, que tudo estima em nada,
Se faz temer ao Reino de Granada.
113
«Eis as lanças e espadas retiniam
Por cima dos arneses – bravo estrago! –;
Chamam (segundo as Leis que ali seguiam),
Uns Mafamede e os outros Santiago.
Os feridos com grita o céu feriam,
Fazendo de seu sangue bruto lago,
Onde outros, meios mortos, se afogavam,
Quando do ferro as vidas escapavam.
114
«Com esforço tamanho estrui e mata
O Luso ao Granadil, que em pouco espaço
Totalmente o poder lhe desbarata,
Sem lhe valer defesa ou peito de aço.
De alcançar tal vitória tão barata
Inda não bem contente o forte braço,
Vai ajudar ao bravo Castelhano,
Que pelejando está co Mauritano.
115
«Já se ia o Sol ardente recolhendo
Pera a casa de Tétis, e inclinado
Pera, o Ponente, o véspero trazendo,
Estava o claro dia memorado,
Quando o poder do Mauro, grande e horrendo,
Foi pelos fortes Reis desbaratado,
Com tanta mortindade que a memória
Nunca no mundo viu tão grão vitória.
12. Inês de Castro (III, 118-135)
por Columbano Bordalo Pinheiro.
118
«Passada esta tão próspera vitória,
Tornado Afonso à Lusitana terra,
A se lograr da paz com tanta glória
Quanta soube ganhar na dura guerra,
O caso triste, e dino da memória
Que do sepulcro os homens desenterra,
Aconteceu da mísera e mesquinha
Que despois de ser morta foi Rainha.
119
«Tu só, tu, puro Amor, com força crua,
Que os corações humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.
120
«Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saüdosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
121
«Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
122
«De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
123
«Tirar Inês ao mundo determina,
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor Mauro, fosse alevantada
Contra ũa fraca dama delicada?
124
«Traziam-a os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade;
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela, com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa e saudade
Do seu Príncipe e filhos, que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,
125
«Pera o céu cristalino alevantando,
Com lágrimas, os olhos piedosos
(Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos);
E despois nos mininos atentando,
Que tão queridos tinha e tão mimosos,
Cuja orfindade como mãe temia,
Pera o avô cruel assi dizia:
126
– «Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fez cruel de nascimento,
E nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas têm o intento,
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piadoso sentimento
Como co a mãe de Nino já mostraram,
E cos irmãos que Roma edificaram:
127
«Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar ũa donzela,
Fraca e sem força, só por ter subjeito
O coração a quem soube vencê-la),
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.
128
«E se, vencendo a Maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem pera perdê-la não fez erro.
Mas, se to assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.
129
«Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre liões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei.
Ali, co amor intrínseco e vontade
Naquele por quem mouro, criarei
Estas relíquias suas, que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.»
130
«Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra ũa dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais – e cavaleiros?
131
«Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela, os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:
132
«Tais contra Inês os brutos matadores,
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que despois a fez Rainha,
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.
133
«Bem puderas, ó Sol, da vista destes,
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de Atreu comia!
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome do seu Pedro, que lhe ouvistes,
Por muito grande espaço repetistes!
134
«Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lacivas maltratada
Da minina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a cor murchada:
Tal está, morta, a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas e perdida
A branca e viva cor, co a doce vida.
135
«As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram.
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês, que ali passaram.
Vede que fresca fonte rega as flores,
Que lágrimas são a água e o nome Amores!
13. A Batalha de Aljubarrota (IV, 28-45)
28
«Deu sinal a trombeta Castelhana,
Horrendo, fero, ingente e temeroso;
Ouviu-o o monte Artabro, e Guadiana
Atrás tornou as ondas de medroso.
Ouviu[-o] o Douro e a terra Transtagana;
Correu ao mar o Tejo duvidoso;
E as mães, que o som terríbil escuitaram,
Aos peitos os filhinhos apertaram.
29
«Quantos rostos ali se vêm sem cor,
Que ao coração acode o sangue amigo!
Que, nos perigos grandes, o temor
É maior muitas vezes que o perigo.
E se o não é, parece-o; que o furor
De ofender ou vencer o duro imigo
Faz não sentir que é perda grande e rara
Dos membros corporais, da vida cara.
30
«Começa-se a travar a incerta guerra:
De ambas partes se move a primeira ala;
Uns leva a defensão da própria terra,
Outros as esperanças de ganhá-la.
Logo o grande Pereira, em quem se encerra
Todo o valor, primeiro se assinala:
Derriba e encontra e a terra enfim semeia
Dos que a tanto desejam, sendo alheia.
31
«Já pelo espesso ar os estridentes
Farpões, setas e vários tiros voam;
Debaxo dos pés duros dos ardentes
Cavalos treme a terra, os vales soam.
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes
Quedas co as duras armas tudo atroam.
Recrecem os imigos sobre a pouca
Gente do fero Nuno, que os apouca.
32
«Eis ali seus irmãos contra ele vão
(Caso feio e cruel!); mas não se espanta,
Que menos é querer matar o irmão,
Quem contra o Rei e a Pátria se alevanta.
Destes arrenegados muitos são
No primeiro esquadrão, que se adianta
Contra irmãos e parentes (caso estranho),
Quais nas guerras civis de Júlio [e] Magno.
33
«Ó tu, Sertório, ó nobre Coriolano,
Catilina, e vós outros dos antigos
Que contra vossas pátrias com profano
Coração vos fizestes inimigos:
Se lá no reino escuro de Sumano
Receberdes gravíssimos castigos,
Dizei-lhe que também dos Portugueses
Alguns tredores houve algũas vezes.
34
«Rompem-se aqui dos nossos os primeiros,
Tantos dos inimigos a eles vão!
Está ali Nuno, qual pelos outeiros
De Ceita está o fortíssimo lião
Que cercado se vê dos cavaleiros
Que os campos vão correr de Tutuão:
Perseguem-no com as lanças, e ele, iroso,
Torvado um pouco está, mas não medroso;
35
«Com torva vista os vê, mas a natura
Ferina e a ira não lhe compadecem
Que as costas dê, mas antes na espessura
Das lanças se arremessa, que recrecem.
Tal está o cavaleiro, que a verdura
Tinge co sangue alheio; ali perecem
Alguns dos seus, que o ânimo valente
Perde a virtude contra tanta gente.
36
«Sentiu Joane a afronta que passava
Nuno, que, como sábio capitão,
Tudo corria e via e a todos dava,
Com presença e palavras, coração.
Qual parida lioa, fera e brava,
Que os filhos, que no ninho sós estão,
Sentiu que, enquanto pasto lhe buscara,
O pastor de Massília lhos furtara,
37
«Corre raivoso e freme e com bramidos
Os montes Sete Irmãos atroa e abala:
Tal Joane, com outros escolhidos
Dos seus, correndo acode à primeira ala:
– «Ó fortes companheiros, ó subidos
Cavaleiros, a quem nenhum se iguala,
Defendei vossas terras, que a esperança
Da liberdade está na nossa lança!
38
«Vedes-me aqui, Rei vosso e companheiro,
Que entre as lanças e setas e os arneses
Dos inimigos corro e vou primeiro;
Pelejai, verdadeiros Portugueses!»
Isto disse o magnânimo guerreiro
E, sopesando a lança quatro vezes,
Com força tira; e deste único tiro
Muitos lançaram o último suspiro.
39
«Porque eis os seus, acesos novamente
Dũa nobre vergonha e honroso fogo,
Sobre qual mais, com ânimo valente,
Perigos vencerá do Márcio jogo,
Porfiam; tinge o ferro o fogo ardente;
Rompem malhas primeiro e peitos logo.
Assi recebem junto e dão feridas,
Como a quem já não dói perder as vidas.
40
«A muitos mandam ver o Estígio lago,
Em cujo corpo a morte e o ferro entrava.
O Mestre morre ali de Santiago,
Que fortissimamente pelejava;
Morre também, fazendo grande estrago,
Outro Mestre cruel de Calatrava.
Os Pereiras também, arrenegados,
Morrem, arrenegando o Céu e os Fados.
41
«Muitos também do vulgo vil, sem nome,
Vão, e também dos nobres, ao Profundo,
Onde o trifauce Cão perpétua fome
Tem das almas que passam deste mundo.
E por que mais aqui se amanse e dome
A soberba do imigo furibundo,
A sublime bandeira Castelhana
Foi derribada òs pés da Lusitana.
42
«Aqui a fera batalha se encruece
Com mortes, gritos, sangue e cutiladas;
A multidão da gente que perece
Tem as flores da própria cor mudadas.
Já as costas dão e as vidas; já falece
O furor e sobejam as lançadas;
Já de Castela o Rei desbaratado
Se vê e de seu propósito mudado.
43
«O campo vai deixando ao vencedor,
Contente de lhe não deixar a vida.
Seguem-no os que ficaram, e o temor
Lhe dá, não pés, mas asas à fugida.
Encobrem no profundo peito a dor
Da morte, da fazenda despendida,
Da mágoa, da desonra e triste nojo
De ver outrem triunfar de seu despojo.
44
«Alguns vão maldizendo e blasfemando
Do primeiro que guerra fez no mundo;
Outros a sede dura vão culpando
Do peito cobiçoso e sitibundo,
Que, por tomar o alheio, o miserando
Povo aventura às penas do Profundo,
Deixando tantas mães, tantas esposas,
Sem filhos, sem maridos, desditosas.
45
«O vencedor Joane esteve os dias
Costumados no campo, em grande glória;
Com ofertas, despois, e romarias,
As graças deu a Quem lhe deu vitória.
Mas Nuno, que não quer por outras vias
Entre as gentes deixar de si memória
Senão por armas sempre soberanas,
Pera as terras se passa Transtaganas.
14. As despedidas em Belém (IV, 84-93)
Óleo de Carlos Alberto Santos
84
«E já no porto da ínclita Ulisseia,
Cum alvoroço nobre e cum desejo
(Onde o licor mistura e branca areia
Co salgado Neptuno o doce Tejo)
As naus prestes estão; e não refreia
Temor nenhum o juvenil despejo,
Porque a gente marítima e a de Marte
Estão pera seguir-me a toda a parte,
85
«Pelas praias vestidos os soldados
De várias cores vêm e várias artes,
E não menos de esforço aparelhados
Pera buscar do mundo novas partes.
Nas fortes naus os ventos sossegados
Ondeiam os aéreos estandartes;
Elas prometem, vendo os mares largos,
De ser no Olimpo estrelas, como a de Argos.
86
«Despois de aparelhados, desta sorte,
De quanto tal viagem pede e manda,
Aparelhámos a alma pera a morte,
Que sempre aos nautas ante os olhos anda.
Pera o sumo Poder, que a etérea Corte
Sustenta só co a vista veneranda,
Implorámos favor que nos guiasse
E que nossos começos aspirasse.
87
«Partimo-nos assi do santo templo
Que nas praias do mar está assentado,
Que o nome tem da terra, pera exemplo,
Donde Deus foi em carne ao mundo dado.
Certifico-te, ó Rei, que, se contemplo
Como fui destas praias apartado,
Cheio dentro de dúvida e receio,
Que apenas nos meus olhos ponho o freio.
88
«A gente da cidade, aquele dia,
(Uns por amigos, outros por parentes,
Outros por ver somente) concorria,
Saüdosos na vista e descontentes.
E nós, co a virtuosa companhia
De mil Religiosos diligentes,
Em procissão solene, a Deus orando,
Pera os batéis viemos caminhando.
89
«Em tão longo caminho e duvidoso
Por perdidos as gentes nos julgavam,
As mulheres cum choro piadoso,
Os homens com suspiros que arrancavam.
Mães, Esposas, Irmãs, que o temeroso
Amor mais desconfia, acrescentavam
A desesperação e frio medo
De já nos não tornar a ver tão cedo.
90
«Qual vai dizendo: – «Ó filho, a quem eu tinha
Só pera refrigério e doce emparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amaro,
Porque me deixas, mísera e mesquinha?
Porque de mi te vás, o filho caro,
A fazer o funéreo encerramento
Onde sejas de pexes mantimento?»
91
«Qual em cabelo: – «Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
Como, por um caminho duvidoso,
Vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento,
Quereis que com as velas leve o vento?»
92
«Nestas e outras palavras que diziam,
De amor e de piadosa humanidade,
Os velhos e os mininos os seguiam,
Em quem menos esforço põe a idade.
Os montes de mais perto respondiam,
Quási movidos de alta piedade;
A branca areia as lágrimas banhavam,
Que em multidão com elas se igualavam.
93
«Nós outros, sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assi nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
Que, posto que é de amor usança boa,
A quem se aparta, ou fica, mais magoa.
15. A fala do Velho do Restelo (IV, 94-102.]
por Columbano Bordalo Pinheiro.
94
«Mas um velho, d’aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só d' experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
95
– «Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cũa aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
96
«Dura inquietação d'alma e da vida
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
97
«A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
D' ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
98
«Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade d’ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d’armas te deitou:
99
«Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:
100
«Não tens junto contigo o Ismaelita,
Com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
Se tu pola de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
Se queres por vitórias ser louvado?
101
«Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje
Chamando-te senhor, com larga cópia,
Da Índia, Pérsia, Arábia e de Etiópia.
102
«Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
Nas ondas vela pôs em seco lenho!
Dino da eterna pena do Profundo,
Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
Nem cítara sonora ou vivo engenho
Te dê por isso fama nem memória,
Mas contigo se acabe o nome e glória!
16. A Partida da armada de Lisboa (V, 1-3)
1
«ESTAS sentenças tais o velho honrado
Vociferando estava, quando abrimos
As asas ao sereno e sossegado
Vento, e do porto amado nos partimos.
E, como é já no mar costume usado,
A vela desfraldando, o céu ferimos,
Dizendo: – «Boa viagem!»; logo o vento
Nos troncos fez o usado movimento.
2
«Entrava neste tempo o eterno lume
No animal Nemeio truculento;
E o Mundo, que co tempo se consume,
Na sexta idade andava, enfermo e lento.
Nela vê, como tinha por costume,
Cursos do Sol catorze vezes cento,
Com mais noventa e sete, em que corria,
Quando no mar a armada se estendia.
3
«Já a vista, pouco e pouco, se desterra
Daqueles pátrios montes, que ficavam;
Ficava o caro Tejo e a fresca serra
De Sintra, e nela os olhos se alongavam;
Ficava-nos também na amada terra
O coração, que as mágoas lá deixavam;
E, já despois que toda se escondeu,
Não vimos mais, enfim, que mar e céu.
imagem no blogue do escritor João Morgado
16
«Contar-te longamente as perigosas
Cousas do mar, que os homens não entendem,
Súbitas trovoadas temerosas,
Relâmpados que o ar em fogo acendem,
Negros chuveiros, noites tenebrosas,
Bramidos de trovões, que o mundo fendem,
Não menos é trabalho que grande erro,
Ainda que tivesse a voz de ferro.
17
«Os casos vi, que os rudos marinheiros,
Que têm por mestra a longa experiência,
Contam por certos sempre e verdadeiros,
Julgando as cousas só pola aparência,
E que os que têm juízos mais inteiros,
Que só por puro engenho e por ciência
Vêm do mundo os segredos escondidos,
Julgam por falsos ou mal entendidos.
18. O fogo de santelmo e a tromba marítima (V, 18-22)
18
«Vi, claramente visto, o lume vivo
Que a marítima gente tem por santo,
Em tempo de tormenta e vento esquivo,
De tempestade escura e triste pranto.
Não menos foi a todos excessivo
Milagre, e cousa, certo, de alto espanto,
Ver as nuvens, do mar com largo cano,
Sorver as altas águas do Oceano.
19
«Eu o vi certamente (e não presumo
Que a vista me enganava): levantar-se
No ar um vaporzinho e sutil fumo
E, do vento trazido, rodear-se;
De aqui levado um cano ao Pólo sumo
Se via, tão delgado, que enxergar-se
Dos olhos facilmente não podia;
Da matéria das nuvens parecia.
20
«Ia-se pouco e pouco acrescentando
E mais que um largo masto se engrossava;
Aqui se estreita, aqui se alarga, quando
Os golpes grandes de água em si chupava;
Estava-se co as ondas ondeando;
Em cima dele ũa nuvem se espessava,
Fazendo-se maior, mais carregada,
Co cargo grande d’água em si tomada.
21
«Qual roxa sanguessuga se veria
Nos beiços da alimária (que, imprudente,
Bebendo a recolheu na fonte fria)
Fartar co sangue alheio a sede ardente;
Chupando, mais e mais se engrossa e cria,
Ali se enche e se alarga grandemente:
Tal a grande coluna, enchendo, aumenta
A si e a nuvem negra que sustenta.
22
«Mas, despois que de todo se fartou,
O pé que tem no mar a si recolhe
E pelo céu, chovendo, enfim voou,
Por que co a água a jacente água molhe;
Às ondas torna as ondas que tomou,
Mas o sabor do sal lhe tira e tolhe.
Vejam agora os sábios na escritura
Que segredos são estes de Natura!
19. Fernão Veloso em terra (V, 31-36)
Fonte da imagem, aqui.
31
«É Veloso no braço confiado
E, de arrogante, crê que vai seguro;
Mas, sendo um grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece e, segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora, vinha.
32
«O batel de Coelho foi depressa
Polo tomar; mas, antes que chegasse,
Um Etíope ousado se arremessa
A ele, por que não se lhe escapasse;
Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse;
Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro, descoberto.
33
«Da espessa nuvem setas e pedradas
Chovem sobre nós outros, sem medida;
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que esta perna trouxe eu dali ferida.
Mas nós, como pessoas magoadas,
A reposta lhe demos tão tecida
Que em mais que nos barretes se suspeita
Que a cor vermelha levam desta feita.
34
«E, sendo já Veloso em salvamento,
Logo nos recolhemos pera a armada,
Vendo a malícia feia e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada,
De quem nenhum milhor conhecimento
Pudemos ter da Índia desejada
Que estarmos inda muito longe dela.
E assi tornei a dar ao vento a vela.
35
«Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
– «Oulá, Veloso amigo! Aquele outeiro
É milhor de decer que de subir!»
– «Si, é (responde o ousado aventureiro);
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»
36
«Contou então que, tanto que passaram
Aquele monte os negros de quem falo,
Avante mais passar o não deixaram,
Querendo, se não torna, ali matá-lo;
E tornando-se, logo se emboscaram,
Por que, saindo nós pera tomá-lo,
Nos pudessem mandar ao reino escuro,
Por nos roubarem mais a seu seguro.
20. O Gigante Adamastor (V, 37-60)
Aparição do gigante Adamastor na passagem do Cabo da Boa Esperança
Desenho de Fragonard e gravura de Bovinet.
Edição de Os Lusíadas, Paris, 1837.
37
«Porém já cinco Sóis eram passados
Que dali nos partíramos, cortando
Os mares nunca d’outrem navegados,
Prosperamente os ventos assoprando,
Quando ũa noute, estando descuidados
Na cortadora proa vigiando,
Ũa nuvem que os ares escurece,
Sobre nossas cabeças aparece.
38
«Tão temerosa vinha e carregada,
Que pôs nos corações um grande medo;
Bramindo, o negro mar de longe brada,
Como se desse em vão nalgum rochedo.
– «Ó Potestade (disse) sublimada:
Que ameaço divino ou que segredo
Este clima e este mar nos apresenta,
Que mor cousa parece que tormenta?»
39
«Não acabava, quando ũa figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
40
«Tão grande era de membros, que bem posso
Certificar-te que este era o segundo
De Rodes estranhíssimo Colosso,
Que um dos sete milagres foi do mundo.
Cum tom de voz nos fala, horrendo e grosso,
Que pareceu sair do mar profundo.
Arrepiam-se as carnes e o cabelo,
A mi e a todos, só de ouvi-lo e vê-lo!
41
«E disse: – «Ó gente ousada, mais que quantas
No mundo cometeram grandes cousas,
Tu, que por guerras cruas, tais e tantas,
E por trabalhos vãos nunca repousas,
Pois os vedados términos quebrantas
E navegar meus longos mares ousas,
Que eu tanto tempo há já que guardo e tenho,
Nunca arados d' estranho ou próprio lenho;
42
«Pois vens ver os segredos escondidos
Da natureza e do húmido elemento,
A nenhum grande humano concedidos
De nobre ou de imortal merecimento,
Ouve os danos de mi que apercebidos
Estão a teu sobejo atrevimento,
Por todo o largo mar e pola terra
Que inda hás-de sojugar com dura guerra.
43
«Sabe que quantas naus esta viagem
Que tu fazes, fizerem, de atrevidas,
Inimiga terão esta paragem,
Com ventos e tormentas desmedidas;
E da primeira armada que passagem
Fizer por estas ondas insofridas,
Eu farei de improviso tal castigo
Que seja mor o dano que o perigo!
44
«Aqui espero tomar, se não me engano,
De quem me descobriu suma vingança;
E não se acabará só nisto o dano
De vossa pertinace confiança:
Antes, em vossas naus vereis, cada ano,
Se é verdade o que meu juízo alcança,
Naufrágios, perdições de toda sorte,
Que o menor mal de todos seja a morte!
45
«E do primeiro Ilustre, que a ventura
Com fama alta fizer tocar os Céus,
Serei eterna e nova sepultura,
Por juízos incógnitos de Deus.
Aqui porá da Turca armada dura
Os soberbos e prósperos troféus;
Comigo de seus danos o ameaça
A destruída Quíloa com Mombaça.
46
«Outro também virá, de honrada fama,
Liberal, cavaleiro, enamorado,
E consigo trará a fermosa dama
Que Amor por grão mercê lhe terá dado.
Triste ventura e negro fado os chama
Neste terreno meu, que, duro e irado,
Os deixará dum cru naufrágio vivos,
Pera verem trabalhos excessivos.
47
«Verão morrer com fome os filhos caros,
Em tanto amor gerados e nacidos;
Verão os Cafres, ásperos e avaros,
Tirar à linda dama seus vestidos;
Os cristalinos membros e perclaros
À calma, ao frio, ao ar, verão despidos,
Despois de ter pisada, longamente,
Cos delicados pés a areia ardente.
48
«E verão mais os olhos que escaparem
De tanto mal, de tanta desventura,
Os dous amantes míseros ficarem
Na férvida, implacábil espessura.
Ali, despois que as pedras abrandarem
Com lágrimas de dor, de mágoa pura,
Abraçados, as almas soltarão
Da fermosa e misérrima prisão.»
49
«Mais ia por diante o monstro horrendo,
Dizendo nossos Fados, quando, alçado,
Lhe disse eu: – «Quem és tu? Que esse estupendo
Corpo, certo me tem maravilhado!»
A boca e os olhos negros retorcendo
E dando um espantoso e grande brado,
Me respondeu, com voz pesada e amara,
Como quem da pergunta lhe pesara:
50
– «Eu sou aquele oculto e grande Cabo
A quem chamais vós outros Tormentório,
Que nunca a Ptolomeu, Pompónio, Estrabo,
Plínio e quantos passaram fui notório.
Aqui toda a Africana costa acabo
Neste meu nunca visto Promontório,
Que pera o Pólo Antártico se estende,
A quem vossa ousadia tanto ofende.
51
«Fui dos filhos aspérrimos da Terra,
Qual Encélado, Egeu e o Centimano;
Chamei-me Adamastor, e fui na guerra
Contra o que vibra os raios de Vulcano;
Não que pusesse serra sobre serra,
Mas, conquistando as ondas do Oceano,
Fui capitão do mar, por onde andava
A armada de Neptuno, que eu buscava.
52
«Amores da alta esposa de Peleu
Me fizeram tomar tamanha empresa;
Todas as Deusas desprezei do Céu,
Só por amar das águas a Princesa.
Um dia a vi, co as filhas de Nereu,
Sair nua na praia e logo presa
A vontade senti de tal maneira
Que inda não sinto cousa que mais queira.
53
«Como fosse impossíbil alcançá-la,
Pola grandeza feia de meu gesto,
Determinei por armas de tomá-la
E a Dóris este caso manifesto.
De medo a Deusa então por mi lhe fala;
Mas ela, cum fermoso riso honesto,
Respondeu: – «Qual será o amor bastante
De Ninfa, que sustente o dum Gigante?
54
«Contudo, por livrarmos o Oceano
De tanta guerra, eu buscarei maneira
Com que, com minha honra, escuse o dano.»
Tal resposta me torna a mensageira.
Eu, que cair não pude neste engano
(Que é grande dos amantes a cegueira),
Encheram-me, com grandes abondanças,
O peito de desejos e esperanças.
55
«Já néscio, já da guerra desistindo,
Ũa noite, de Dóris prometida,
Me aparece de longe o gesto lindo
Da branca Tétis, única, despida.
Como doudo corri de longe, abrindo
Os braços pera aquela que era vida
Deste corpo, e começo os olhos belos
A lhe beijar, as faces e os cabelos.
56
«Oh que não sei de nojo como o conte!
Que, crendo ter nos braços quem amava,
Abraçado me achei cum duro monte
De áspero mato e de espessura brava.
Estando cum penedo fronte a fronte,
Qu’eu polo rosto angélico apertava,
Não fiquei homem, não; mas mudo e quedo
E, junto dum penedo, outro penedo!
57
«Ó Ninfa, a mais fermosa do Oceano,
Já que minha presença não te agrada,
Que te custava ter-me neste engano,
Ou fosse monte, nuvem, sonho ou nada?
Daqui me parto, irado e quási insano
Da mágoa e da desonra ali passada,
A buscar outro mundo, onde não visse
Quem de meu pranto e de meu mal se risse.
58
«Eram já neste tempo meus Irmãos
Vencidos e em miséria extrema postos,
E, por mais segurar-se os Deuses vãos,
Alguns a vários montes sotopostos.
E, como contra o Céu não valem mãos,
Eu, que chorando andava meus desgostos,
Comecei a sentir do Fado imigo,
Por meus atrevimentos, o castigo:
59
«Converte-se-me a carne em terra dura;
Em penedos os ossos se fizeram;
Estes membros que vês, e esta figura,
Por estas longas águas se estenderam.
Enfim, minha grandíssima estatura
Neste remoto Cabo converteram
Os Deuses; e, por mais dobradas mágoas,
Me anda Tétis cercando destas águas.»
60
«Assi contava; e, cum medonho choro,
Súbito d’ante os olhos se apartou;
Desfez-se a nuvem negra, e cum sonoro
Bramido muito longe o mar soou.
Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou,
A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros.
21. O escorbuto (V, 81-83)
81
«E foi que, de doença crua e feia,
A mais que eu nunca vi, desampararam
Muitos a vida, e em terra estranha e alheia
Os ossos pera sempre sepultaram.
Quem haverá que, sem o ver, o creia,
Que tão disformemente ali lhe incharam
As gingivas na boca, que crecia
A carne e juntamente apodrecia?
82
«Apodrecia cum fétido e bruto
Cheiro, que o ar vizinho inficionava.
Não tínhamos ali médico astuto,
Cirurgião sutil menos se achava;
Mas qualquer, neste ofício pouco instruto,
Pela carne já podre assi cortava
Como se fora morta, e bem convinha,
Pois que morto ficava quem a tinha.
83
«Enfim que nesta incógnita espessura
Deixámos pera sempre os companheiros
Que em tal caminho e em tanta desventura
Foram sempre connosco aventureiros.
Quão fácil é ao corpo a sepultura!
Quaisquer ondas do mar, quaisquer outeiros
Estranhos, assi mesmo como aos nossos,
Receberão de todo o Ilustre os ossos.
22. O congresso dos deuses marítimos e a fala de Baco (VI, 16-37)
O regresso de Neptuno, c. 1754
por John Singleton Copley
16
Julgando já Neptuno que seria
Estranho caso aquele, logo manda
Tritão, que chame os Deuses da água fria,
Que o mar habitam dua e doutra banda.
Tritão, que de ser filho se gloria
Do Rei e de Salácia veneranda,
Era mancebo grande, negro e feio,
Trombeta de seu pai e seu correio.
17
Os cabelos da barba e os que decem
Da cabeça nos ombros, todos eram
Uns limos prenhes d' água, e bem parecem
Que nunca brando pêntem conheceram.
Nas pontas pendurados não falecem
Os negros mexilhões, que ali se geram.
Na cabeça, por gorra, tinha posta
Ũa mui grande casca de lagosta.
18
O corpo nu, e os membros genitais,
Por não ter ao nadar impedimento,
Mas porém de pequenos animais
Do mar todos cobertos, cento e cento:
Camarões e cangrejos e outros mais,
Que recebem de Febe crecimento;
Ostras e birbigões, do musco sujos,
Às costas co a casca os caramujos.
19
Na mão a grande concha retorcida
Que trazia, com força já tocava;
A voz grande, canora, foi ouvida
Por todo o mar, que longe retumbava.
Já toda a companhia, apercebida,
Dos Deuses pera os paços caminhava
Do Deus que fez os muros de Dardânia,
Destruídos despois da Grega insânia.
20
Vinha o padre Oceano, acompanhado
Dos filhos e das filhas que gerara;
Vem Nereu, que com Dóris foi casado,
Que todo o mar de Ninfas povoara.
O profeta Proteu, deixando o gado
Marítimo pacer pela água amara,
Ali veio também, mas já sabia
O que o padre Lieu no mar queria.
21
Vinha por outra parte a linda esposa
De Neptuno, de Celo e Vesta filha,
Grave e leda no gesto, e tão fermosa
Que se amansava o mar, de maravilha.
Vestida ũa camisa preciosa
Trazia, de delgada beatilha,
Que o corpo cristalino deixa ver-se,
Que tanto bem não é pera esconder-se.
22
Anfitrite, fermosa como as flores,
Neste caso não quis que falecesse;
O delfim traz consigo que aos amores
Do Rei lhe aconselhou que obedecesse.
Cos olhos, que de tudo são senhores,
Qualquer parecerá que o Sol vencesse.
Ambas vêm pela mão, igual partido,
Pois ambas são esposas dum marido.
23
Aquela que, das fúrias de Atamante
Fugindo, veio a ter divino estado,
Consigo traz o filho, belo infante,
No número dos Deuses relatado;
Pela praia brincando vem, diante,
Com as lindas conchinhas, que o salgado
Mar sempre cria; e às vezes pela areia
No colo o toma a bela Panopeia.
24
E o Deus que foi num tempo corpo humano
E por virtude da erva poderosa,
Foi convertido em pexe, e deste dano
Lhe resultou Deidade gloriosa,
Inda vinha chorando o feio engano
Que Circes tinha usado co a fermosa
Scila, que ele ama, desta sendo amado,
Que a mais obriga amor mal empregado.
25
Já finalmente todos assentados
Na grande sala, nobre e divinal,
As Deusas em riquíssimos estrados,
Os Deuses em cadeiras de cristal,
Foram todos do Padre agasalhados,
Que co Tebano tinha assento igual;
De fumos enche a casa a rica massa
Que no mar nace e Arábia em cheiro passa.
26
Estando sossegado já o tumulto
Dos Deuses e de seus recebimentos,
Começa a descobrir do peito oculto
A causa o Tioneu de seus tormentos;
Um pouco carregando-se no vulto,
Dando mostra de grandes sentimentos,
Só por dar aos de Luso triste morte
Co ferro alheio, fala desta sorte:
27
– «Príncipe, que de juro senhoreias,
Dum Pólo ao outro Pólo, o mar irado,
Tu, que as gentes da Terra toda enfreias,
Que não passem o termo limitado;
E tu, padre Oceano, que rodeias
O Mundo universal e o tens cercado,
E com justo decreto assi permites
Que dentro vivam só de seus limites;
28
«E vós, Deuses do Mar, que não sofreis
Injúria algũa em vosso reino grande,
Que com castigo igual vos não vingueis
De quem quer que por ele corra e ande:
Que descuido foi este em que viveis?
Quem pode ser que tanto vos abrande
Os peitos, com razão endurecidos
Contra os humanos, fracos e atrevidos?
29
«Vistes que, com grandíssima ousadia,
Foram já cometer o Céu supremo;
Vistes aquela insana fantasia
De tentarem o mar com vela e remo;
Vistes, e ainda vemos cada dia,
Soberbas e insolências tais, que temo
Que do Mar e do Céu, em poucos anos,
Venham Deuses a ser, e nós, humanos.
30
«Vedes agora a fraca geração
Que dum vassalo meu o nome toma,
Com soberbo e altivo coração
A vós e a mi e o mundo todo doma.
Vedes, o vosso mar cortando vão,
Mais do que fez a gente alta de Roma;
Vedes, o vosso reino devassando,
Os vossos estatutos vão quebrando.
31
«Eu vi que contra os Mínias, que primeiro
No vosso reino este caminho abriram,
Bóreas, injuriado, e o companheiro
Áquilo e os outros todos resistiram.
Pois se do ajuntamento aventureiro
Os ventos esta injúria assi sentiram,
Vós, a quem mais compete esta vingança,
Que esperais? Porque a pondes em tardança?
32
«E não consinto, Deuses, que cuideis
Que por amor de vós do Céu deci,
Nem da mágoa da injúria que sofreis,
Mas da que se me faz também a mi;
Que aquelas grandes honras que sabeis
Que no mundo ganhei, quando venci
As terras Indianas do Oriente,
Todas vejo abatidas desta gente.
33
«Que o grão Senhor e Fados, que destinam,
Como lhe bem parece, o baxo mundo,
Famas, mores que nunca, determinam
De dar a estes barões no mar profundo.
Aqui vereis, ó Deuses, como ensinam
O mal também a Deuses; que, a segundo
Se vê, ninguém já tem menos valia
Que quem com mais razão valer devia.
34
«E por isso do Olimpo já fugi,
Buscando algum remédio a meus pesares,
Por ver o preço que no Céu perdi,
Se por dita acharei nos vossos mares.»
Mais quis dizer, e não passou daqui,
Porque as lágrimas já, correndo a pares,
Lhe saltaram dos olhos, com que logo
Se acendem as Deidades d' água em fogo.
35
A ira com que súbito alterado
O coração dos Deuses foi num ponto,
Não sofreu mais conselho bem cuidado
Nem dilação nem outro algum desconto:
Ao grande Eolo mandam já recado,
Da parte de Neptuno, que sem conto
Solte as fúrias dos ventos repugnantes,
Que não haja no mar mais navegantes!
36
Bem quisera primeiro ali Proteu
Dizer, neste negócio, o que sentia;
E, segundo o que a todos pareceu,
Era algũa profunda profecia.
Porém tanto o tumulto se moveu,
Súbito, na divina companhia,
Que Tétis, indinada, lhe bradou:
– «Neptuno sabe bem o que mandou!»
37
Já lá o soberbo Hipótades soltava
Do cárcere fechado os furiosos
Ventos, que com palavras animava
Contra os varões audaces e animosos.
Súbito, o céu sereno se obumbrava,
Que os ventos, mais que nunca impetuosos,
Começam novas forças a ir tomando,
Torres, montes e casas derribando.
23. A tempestade (VI, 70-91)
Vénus aplaca os ventos e a tormenta
desenho de Fragonard para a edição de 1837 do Morgado de Mateus.
70
Mas neste passo, assi prontos estando,
Eis o mestre, que olhando os ares anda,
O apito toca: acordam, despertando,
Os marinheiros dũa e doutra banda,
E, porque o vento vinha refrescando,
Os traquetes das gáveas tomar manda.
– «Alerta (disse) estai, que o vento crece
Daquela nuvem negra que aparece!»
71
Não eram os traquetes bem tomados,
Quando dá a grande e súbita procela.
– «Amaina (disse o mestre a grandes brados),
Amaina (disse), amaina a grande vela!»
Não esperam os ventos indinados
Que amainassem, mas, juntos dando nela,
Em pedaços a fazem cum ruído
Que o Mundo pareceu ser destruído!
72
O céu fere com gritos nisto a gente,
Cum súbito temor e desacordo;
Que, no romper da vela, a nau pendente
Toma grão suma d' água pelo bordo.
– «Alija (disse o mestre rijamente,
Alija tudo ao mar, não falte acordo!
Vão outros dar à bomba, não cessando;
À bomba, que nos imos alagando!»
73
Correm logo os soldados animosos
A dar à bomba; e, tanto que chegaram,
Os balanços que os mares temerosos
Deram à nau, num bordo os derribaram.
Três marinheiros, duros e forçosos,
A menear o leme não bastaram;
Talhas lhe punham, dũa e doutra parte,
Sem aproveitar dos homens força e arte.
74
Os ventos eram tais que não puderam
Mostrar mais força d' ímpeto cruel,
Se pera derribar então vieram
A fortíssima Torre de Babel.
Nos altíssimos mares, que creceram,
A pequena grandura dum batel
Mostra a possante nau, que move espanto,
Vendo que se sustém nas ondas tanto.
75
A nau grande, em que vai Paulo da Gama,
Quebrado leva o masto pelo meio,
Quási toda alagada; a gente chama
Aquele que a salvar o mundo veio.
Não menos gritos vãos ao ar derrama
Toda a nau de Coelho, com receio,
Conquanto teve o mestre tanto tento
Que primeiro amainou que desse o vento.
76
Agora sobre as nuvens os subiam
As ondas de Neptuno furibundo;
Agora a ver parece que deciam
As íntimas entranhas do Profundo.
Noto, Austro, Bóreas, Áquilo, queriam
Arruinar a máquina do Mundo;
A noite negra e feia se alumia
Cos raios em que o Pólo todo ardia!
77
As Alciónias aves triste canto
Junto da costa brava levantaram,
Lembrando-se de seu passado pranto,
Que as furiosas águas lhe causaram.
Os delfins namorados, entretanto,
Lá nas covas marítimas entraram,
Fugindo à tempestade e ventos duros,
Que nem no fundo os deixa estar seguros.
78
Nunca tão vivos raios fabricou
Contra a fera soberba dos Gigantes
O grão ferreiro sórdido que obrou
Do enteado as armas radiantes;
Nem tanto o grão Tonante arremessou
Relâmpados ao mundo, fulminantes,
No grão dilúvio donde sós viveram
Os dous que em gente as pedras converteram.
79
Quantos montes, então, que derribaram
As ondas que batiam denodadas!
Quantas árvores velhas arrancaram
Do vento bravo as fúrias indinadas!
As forçosas raízes não cuidaram
Que nunca pera o céu fossem viradas,
Nem as fundas areias que pudessem
Tanto os mares que em cima as revolvessem.
80
Vendo Vasco da Gama que tão perto
Do fim de seu desejo se perdia,
Vendo ora o mar até o Inferno aberto,
Ora com nova fúria ao Céu subia,
Confuso de temor, da vida incerto,
Onde nenhum remédio lhe valia,
Chama aquele remédio santo e forte
Que o impossíbil pode, desta sorte:
81
– «Divina Guarda, angélica, celeste,
Que os céus, o mar e terra senhoreias:
Tu, que a todo Israel refúgio deste
Por metade das águas Eritreias;
Tu, que livraste Paulo e defendeste
Das Sirtes arenosas e ondas feias,
E guardaste, cos filhos, o segundo
Povoador do alagado e vácuo mundo:
82
«Se tenho novos medos perigosos
Doutra Cila e Caríbdis já passados,
Outras Sirtes e baxos arenosos,
Outros Acroceráunios infamados;
No fim de tantos casos trabalhosos,
Porque somos de Ti desamparados,
Se este nosso trabalho não te ofende,
Mas antes teu serviço só pretende?
83
«Oh ditosos aqueles que puderam
Entre as agudas lanças Africanas
Morrer, enquanto fortes sustiveram
A santa Fé nas terras Mauritanas;
De quem feitos ilustres se souberam,
De quem ficam memórias soberanas,
De quem se ganha a vida com perdê-la,
Doce fazendo a morte as honras dela!»
84
Assi dizendo, os ventos, que lutam
Como touros indómitos, bramando,
Mais e mais a tormenta acrecentavam,
Pela miúda enxárcia assoviando.
Relâmpados medonhos não cessavam,
Feros trovões, que vêm representando
Cair o Céu dos eixos sobre a Terra,
Consigo os Elementos terem guerra.
85
Mas já a amorosa Estrela cintilava
Diante do Sol claro, no horizonte,
Mensageira do dia, e visitava
A terra e o largo mar, com leda fronte.
A Deusa que nos Céus a governava,
De quem foge o ensífero Orionte,
Tanto que o mar e a cara armada vira,
Tocada junto foi de medo e de ira.
86
– «Estas obras de Baco são, por certo
(Disse), mas não será que avante leve
Tão danada tenção, que descoberto
Me será sempre o mal a que se atreve.»
Isto dizendo, dece ao mar aberto,
No caminho gastando espaço breve,
Enquanto manda as Ninfas amorosas
Grinaldas nas cabeças pôr de rosas.
87
Grinaldas manda pôr de várias cores
Sobre cabelos louros a porfia.
Quem não dirá que nacem roxas flores
Sobre ouro natural, que Amor enfia?
Abrandar determina, por amores,
Dos ventos a nojosa companhia,
Mostrando-lhe as amadas Ninfas belas,
Que mais fermosas vinham que as estrelas.
88
Assi foi; porque, tanto que chegaram
À vista delas, logo lhe falecem
As forças com que dantes pelejaram,
E já como rendidos lhe obedecem;
Os pés e mãos parece que lhe ataram
Os cabelos que os raios escurecem.
A Bóreas, que do peito mais queria,
Assi disse a belíssima Oritia:
89
– «Não creias, fero Bóreas, que te creio
Que me tiveste nunca amor constante,
Que brandura é de amor mais certo arreio
E não convém furor a firme amante.
Se já não pões a tanta insânia freio,
Não esperes de mi, daqui em diante,
Que possa mais amar-te, mas temer-te;
Que amor, contigo, em medo se converte.»
90
Assi mesmo a fermosa Galateia
Dizia ao fero Noto, que bem sabe
Que dias há que em vê-la se recreia,
E bem crê que com ele tudo acabe.
Não sabe o bravo tanto bem se o creia,
Que o coração no peito lhe não cabe;
De contente de ver que a dama o manda,
Pouco cuida que faz, se logo abranda.
91
Desta maneira as outras amansavam
Subitamente os outros amadores;
E logo à linda Vénus se entregavam,
Amansadas as iras e os furores.
Ela lhe prometeu, vendo que amavam,
Sempiterno favor em seus amores,
Nas belas mãos tomando-lhe homenagem
De lhe serem leais esta viagem.
24. A chegada à Índia ( VI, 92-94)
Chegada da guarnição de Vasco da Gama a Calecute, Índia.
92
Já a manhã clara dava nos outeiros
Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta, pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto Melindano:
– «Terra é de Calecu, se não me engano.
93
«Esta é, por certo, a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer aqui não pôde o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece;
Os giolhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agardeceu.
94
As graças a Deus dava, e razão tinha,
Que não somente a terra lhe mostrava
Que, com tanto temor, buscando vinha,
Por quem tanto trabalho exprimentava,
Mas via-se livrado, tão asinha,
Da morte, que no mar lhe aparelhava
O vento duro, férvido e medonho,
Como quem despertou de horrendo sonho.
25. A imortalidade (VI, 95-99)
A coroa de louros de Luís de Camões e dos heróis.
95
Por meio destes hórridos perigos,
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores;
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos;
96
Não cos manjares novos e esquisitos,
Não cos passeios moles e ouciosos,
Não cos vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não cos nunca vencidos apetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum que o passo mude
Pera algũa obra heróica de virtude;
97
Mas com buscar, co seu forçoso braço,
As honras que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado com um árduo sofrimento;
98
E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera o pelouro ardente que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras e dinheiro que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.
99
Destarte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, como de alto assento,
O baxo trato humano embaraçado.
Este, onde tiver força o regimento
Direito e não de afeitos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando.
26. À vista da Índia (VII, 1-15)
Encontro de Vasco da Gama com o Samorim.
1
JÁ se viam chegados junto à terra
Que desejada já de tantos fora,
Que entre as correntes Índicas se encerra
E o Ganges, que no Céu terreno mora.
Ora sus, gente forte, que na guerra
Quereis levar a palma vencedora:
Já sois chegados, já tendes diante
A terra de riquezas abundante!
2
A vós, ó geração de Luso, digo,
Que tão pequena parte sois no mundo,
Não digo inda no mundo, mas no amigo
Curral de Quem governa o Céu rotundo;
Vós, a quem não sòmente algum perigo
Estorva conquistar o povo imundo,
Mas nem cobiça ou pouca obediência
Da Madre que nos Céus está em essência;
3
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade.
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
4
Vede'los Alemães, soberbo gado,
Que por tão largos campos se apacenta;
Do sucessor de Pedro rebelado,
Novo pastor e nova seita inventa;
Vede'lo em feias guerras ocupado,
Que inda co cego error se não contenta,
Não contra o superbíssimo Otomano,
Mas por sair do jugo soberano.
5
Vede'lo duro Inglês, que se nomeia
Rei da velha e santíssima Cidade,
Que o torpe Ismaelita senhoreia
(Quem viu honra tão longe da verdade?),
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz de Cristandade:
Pera os de Cristo tem a espada nua,
Não por tomar a terra que era sua.
6
Guarda-lhe, por entanto, um falso Rei
A cidade Hierosólima terreste,
Enquanto ele não guarda a santa Lei
Da cidade Hierosólima celeste.
Pois de ti, Galo indino, que direi?
Que o nome «Cristianíssimo» quiseste,
Não pera defendê-lo nem guardá-lo,
Mas pera ser contra ele e derribá-lo!
7
Achas que tens direito em senhorios
De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,
E não contra o Cinífio e Nilo rios,
Inimigos do antigo nome santo?
Ali se hão-de provar da espada os fios
Em quem quer reprovar da Igreja o canto.
De Carlos, de Luís, o nome e a terra
Herdaste, e as causas não da justa guerra?
8
Pois que direi daqueles que em delícias,
Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias,
Esquecidos do seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias,
Que o povo forte tem, de si inimigo.
Contigo, Itália, falo, já sumersa
Em vícios mil, e de ti mesma adversa.
9
Ó míseros Cristãos, pola ventura
Sois os dentes, de Cadmo desparzidos,
Que uns aos outros se dão à morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a divina Sepultura
Possuída de Cães, que, sempre unidos,
Vos vêm tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra?
10
Vedes que têm por uso e por decreto,
Do qual são tão inteiros observantes,
Ajuntarem o exército inquieto
Contra os povos que são de Cristo amantes;
Entre vós nunca deixa a fera Aleto
De samear cizânias repugnantes.
Olhai se estais seguros de perigos,
Que eles, e vós, sois vossos inimigos.
11
Se cobiça de grandes senhorios
Vos faz ir conquistar terras alheias,
Não vedes que Pactolo e Hermo rios
Ambos volvem auríferas areias?
Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;
África esconde em si luzentes veias;
Mova-vos já, sequer, riqueza tanta,
Pois mover-vos não pode a Casa Santa.
12
Aquelas invenções, feras e novas,
De instrumentos mortais da artelharia
Já devem de fazer as duras provas
Nos muros de Bizâncio e de Turquia.
Fazei que torne lá às silvestres covas
Dos Cáspios montes e da Cítia fria
A Turca geração, que multiplica
Na polícia da vossa Europa rica.
13
Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,
Bradando vos estão que o povo bruto
Lhe obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos do Alcorão (duro tributo!).
Em castigar os feitos inumanos
Vos gloriai de peito forte e astuto,
E não queirais louvores arrogantes
De serdes contra os vossos mui possantes.
14
Mas, entanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltarão Cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana:
De África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todas soberana;
Na quarta parte nova os campos ara;
E, se mais mundo houvera, lá chegara.
15
E vejamos, entanto, que acontece
Àqueles tão famosos navegantes,
Despois que a branda Vénus enfraquece
O furor vão dos ventos repugnantes;
Despois que a larga terra lhe aparece,
Fim de suas perfias tão constantes,
Onde vem samear de Cristo a lei
E dar novo costume e novo Rei.
27. A terceira invocação (VII, 78-82)
78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego,
Eu, que cometo, insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
79
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Cánace, que à morte se condena,
Nũa mão sempre a espada e noutra a pena;
80
Agora, com pobreza avorrecida,
Por hospícios alheios degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De novo mais que nunca derribado;
Agora às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado
Que não menos milagre foi salvar-se
Que pera o Rei Judaico acrecentar-se.
81
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.
82
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assi sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Pera espertar engenhos curiosos,
Pera porem as cousas em memória
Que merecerem ter eterna glória!
28. Explicação das figuras portuguesas representadas nas bandeiras (VIII, 1-43)
1
NA primeira figura se detinha
O Catual que vira estar pintada,
Que por divisa um ramo na mão tinha,
A barba branca, longa e penteada.
Quem era e por que causa lhe convinha
A divisa que tem na mão tomada?
Paulo responde, cuja voz discreta
O Mauritano sábio lhe interpreta:
2
– «Estas figuras todas que aparecem,
Bravos em vista e feros nos aspeitos,
Mais bravos e mais feros se conhecem,
Pela fama, nas obras e nos feitos.
Antigos são, mas inda resplandecem
Co nome, entre os engenhos mais perfeitos.
Este que vês, é Luso, donde a Fama
O nosso Reino «Lusitânia» chama.
3
«Foi filho e companheiro do Tebano
Que tão diversas partes conquistou;
Parece vindo ter ao ninho Hispano
Seguindo as armas, que contino usou.
Do Douro, Guadiana o campo ufano,
Já dito Elísio, tanto o contentou
Que ali quis dar aos já cansados ossos
Eterna sepultura, e nome aos nossos.
4
«O ramo que lhe vês, pera divisa,
O verde tirso foi, de Baco usado;
O qual à nossa idade amostra e avisa
Que foi seu companheiro e filho amado.
Vês outro, que do Tejo a terra pisa,
Despois de ter tão longo mar arado,
Onde muros perpétuos edifica,
E templo a Palas, que em memória fica?
5
«Ulisses é, o que faz a santa casa
À Deusa que lhe dá língua facunda;
Que se lá na Ásia Tróia insigne abrasa,
Cá na Europa Lisboa ingente funda.»
– «Quem será estoutro cá, que o campo arrasa
De mortos, com presença furibunda?
Grandes batalhas tem desbaratadas,
Que as Águias nas bandeiras tem pintadas!»
6
Assi o Gentio diz. Responde o Gama:
– «Este que vês, pastor já foi de gado;
Viriato sabemos que se chama,
Destro na lança mais que no cajado;
Injuriada tem de Roma a fama,
Vencedor invencíbil, afamado.
Não tem com ele, não, nem ter puderam,
O primor que com Pirro já tiveram.
7
«Com força, não; com manha vergonhosa
A vida lhe tiraram, que os espanta;
Que o grande aperto, em gente inda que honrosa,
Às vezes leis magnânimas quebranta.
Outro está aqui que, contra a pátria irosa,
Degradado, connosco se alevanta;
Escolheu bem com quem se alevantasse
Pera que eternamente se ilustrasse.
8
Vês, connosco também vence as bandeiras
Dessas aves de Júpiter validas;
Que já naquele tempo as mais guerreiras
Gentes de nós souberam ser vencidas.
Olha tão sutis artes e maneiras
Pera adquirir os povos, tão fingidas:
A fatídica cerva que o avisa.
Ele é Sertório, e ela a sua divisa.
9
«Olha estoutra bandeira, e vê pintado
O grão progenitor dos Reis primeiros:
Nós Húngaro o fazemos, porém nado
Crêm ser em Lotaríngia os estrangeiros.
Despois de ter, cos Mouros, superado
Galegos e Lioneses cavaleiros,
À Casa Santa passa o santo Henrique,
Por que o tronco dos Reis se santifique.»
10
– «Quem é, me dize, estoutro que me espanta
(Pergunta o Malabar maravilhado),
Que tantos esquadrões, que gente tanta,
Com tão pouca, tem roto e destroçado?
Tantos muros aspérrimos quebranta,
Tantas batalhas dá, nunca cansado,
Tantas coroas tem, por tantas partes,
A seus pés derribadas, e estandartes?»
11
– «Este é o primeiro Afonso (disse o Gama),
Que todo Portugal aos Mouros toma;
Por quem no Estígio lago jura a Fama
De mais não celebrar nenhum de Roma.
Este é aquele zeloso a quem Deus ama,
Com cujo braço o Mouro imigo doma,
Pera quem de seu Reino abaxa os muros,
Nada deixando já pera os futuros.
12
«Se César, se Alexandre Rei, tiveram
Tão pequeno poder, tão pouca gente,
Contra tantos imigos quantos eram
Os que desbaratava este excelente,
Não creias que seus nomes se estenderam
Com glórias imortais tão largamente;
Mas deixa os feitos seus inexplicáveis,
Vê que os de seus vassalos são notáveis.
13
«Este que vês olhar, com gesto irado,
Pera o rompido aluno mal sofrido,
Dizendo-lhe que o exército espalhado
Recolha, e torne ao campo defendido;
Torna o Moço, do velho acompanhado,
Que vencedor o torna de vencido:
Egas Moniz se chama o forte velho,
Pera leais vassalos claro espelho.
14
«Vê-lo cá vai cos filhos a entregar-se,
A corda ao colo, nu de seda e pano,
Porque não quis o Moço sujeitar-se,
Como ele prometera, ao Castelhano.
Fez com siso e promessas levantar-se
O cerco, que já estava soberano.
Os filhos e mulher obriga à pena:
Pera que o senhor salve, a si condena.
15
«Não fez o Cônsul tanto que cercado
Foi nas Forcas Caudinas, de ignorante,
Quando a passar por baxo foi forçado
Do Samnítico jugo triunfante.
Este, pelo seu povo injuriado,
A si se entrega só, firme e constante;
Estoutro a si e os filhos naturais
E a consorte sem culpa, que dói mais.
16
«Vês este que, saindo da cilada,
Dá sobre o Rei que cerca a vila forte?
Já o Rei tem preso e a vila descercada;
Ilustre feito, dino de Mavorte!
Vê-lo cá vai pintado nesta armada,
No mar também aos Mouros dando a morte,
Tomando-lhe as galés, levando a glória
Da primeira marítima vitória:
17
É Dom Fuas Roupinho, que na terra
E no mar resplandece juntamente,
Co fogo que acendeu junto da serra
De Ábila, nas galés da Maura gente.
Olha como, em tão justa e santa guerra,
De acabar pelejando está contente.
Das mãos dos Mouros entra a felice alma,
Triunfando nos Céus, com justa palma.
18
«Não vês um ajuntamento, de estrangeiro
Trajo, sair da grande armada nova,
Que ajuda a combater o Rei primeiro
Lisboa, de si dando santa prova?
Olha Henrique, famoso cavaleiro,
A palma que lhe nasce junto à cova.
Por eles mostra Deus milagre visto;
Germanos são os Mártires de Cristo.
19
«Um Sacerdote vê, brandindo a espada
Contra Arronches, que toma, por vingança
De Leiria, que de antes foi tomada
Por quem por Mafamede enresta a lança:
É Teotónio Prior. Mas vê cercada
Santarém, e verás a segurança
Da figura nos muros que, primeira
Subindo, ergueu das Quinas a bandeira.
20
«Vê-lo cá, donde Sancho desbarata
Os Mouros de Vandália em fera guerra;
Os imigos rompendo, o alferes mata
E Hispálico pendão derriba em terra:
Mem Moniz é, que em si o valor retrata
Que o sepulcro do pai cos ossos cerra.
Dino destas bandeiras, pois sem falta
A contrária derriba e a sua exalta.
21
«Olha aquele que dece pela lança,
Com as duas cabeças dos vigias,
Onde a cilada esconde, com que alcança
A cidade, por manhas e ousadias.
Ela por armas toma a semelhança
Do cavaleiro que as cabeças frias
Na mão levava (feito nunca feito!):
Giraldo Sem Pavor é o forte peito.
22
«Não vês um Castelhano, que, agravado
De Afonso nono, Rei, pelo ódio antigo
Dos de Lara, cos Mouros é deitado,
De Portugal fazendo-se inimigo?
Abrantes vila toma, acompanhado
Dos duros Infiéis que traz consigo;
Mas vê que um Português com pouca gente
O desbarata e o prende ousadamente.
23
«Martim Lopes se chama o cavaleiro
Que destes levar pode a palma e o louro.
Mas olha um Eclesiástico guerreiro,
Que em lança de aço torna o bago de ouro.
Vê-lo, entre os duvidosos, tão inteiro
Em não negar batalha ao bravo Mouro;
Olha o sinal no Céu, que lhe aparece,
Com que nos poucos seus o esforço crece.
24
«Vês, vão os Reis de Córdova e Sevilha
Rotos, cos outros dous, e não de espaço;
Rotos? Mas antes mortos: maravilha
Feita de Deus, que não de humano braço.
Vês? Já a vila de Alcácere se humilha,
Sem lhe valer defesa ou muro de aço,
A Dom Mateus, o Bispo de Lisboa,
Que a coroa de palma ali coroa.
25
«Olha um Mestre que dece de Castela,
Português de nação, como conquista
A terra dos Algarves, e já nela
Não acha que por armas lhe resista.
Com manha, esforço e com benigna estrela,
Vilas, castelos, toma à escala vista.
Vês Tavila tomada aos moradores,
Em vingança dos sete caçadores?
26
«Vês, com bélica astúcia ao Mouro ganha
Silves, que ele ganhou com força ingente:
É Dom Paio Correia, cuja manha
E grande esforço faz enveja à gente.
Mas não passes os três que em França e Espanha
Se fazem conhecer perpètuamente
Em desafios, justas e tornéus,
Nelas deixando públicos troféus.
27
«Vê-los co nome vêm de aventureiros
A Castela, onde o preço sós levaram
Dos jogos de Belona verdadeiros,
Que com dano de alguns se exercitaram.
Vê mortos os soberbos cavaleiros
Que o principal dos três desafiaram,
Que Gonçalo Ribeiro se nomeia,
Que pode não temer a lei Leteia.
28
«Atenta num que a fama tanto estende
Que de nenhum passado se contenta;
Que a Pátria, que de um fraco fio pende,
Sobre seus duros ombros a sustenta.
Não no vês tinto de ira, que reprende
A vil desconfiança, inerte e lenta,
Do povo, e faz que tome o doce freio
De Rei seu natural, e não de alheio?
29
«Olha: por seu conselho e ousadia,
De Deus guiada só e de santa estrela,
Só, pode o que impossíbil parecia:
Vencer o povo ingente de Castela,
Vês, por indústria, esforço e valentia,
Outro estrago e vitória, clara e bela,
Na gente, assi feroz como infinita,
Que entre o Tarteso e Guadiana habita?
30
«Mas não vês quási já desbaratado
O poder Lusitano, pela ausência
Do Capitão devoto, que, apartado,
Orando invoca a suma e trina Essência?
Vê-lo com pressa já dos seus achado,
Que lhe dizem que falta resistência
Contra poder tamanho, e que viesse
Por que consigo esforço aos fracos desse.
31
«Mas olha com que santa confiança,
Que «inda não era tempo» respondia,
Como quem tinha em Deus a segurança
Da vitória que logo lhe daria.
Assi Pompílio, ouvindo que a possança
Dos imigos a terra lhe corria,
A quem lhe a dura nova estava dando,
«Pois eu (responde) estou sacrificando.»
32
«Se quem com tanto esforço em Deus se atreve
Ouvir quiseres como se nomeia,
«Português Cipião» chamar-se deve;
Mas mais de «Dom Nuno Álvares» se arreia.
Ditosa pátria que tal filho teve!
Mas antes, pai! que, enquanto o Sol rodeia
Este globo de Ceres e Neptuno,
Sempre suspirará por tal aluno.
33
«Na mesma guerra vê que presas ganha
Estoutro Capitão de pouca gente;
Comendadores vence e o gado apanha
Que levavam roubado ousadamente;
Outra vez vê que a lança em sangue banha
Destes, só por livrar, co amor ardente,
O preso amigo, preso por leal:
Pero Rodrigues é do Landroal.
34
«Olha este desleal e como paga
O perjúrio que fez e vil engano;
Gil Fernandes é de Elvas quem o estraga
E faz vir a passar o último dano:
De Xerez rouba o campo e quási alaga
Co sangue de seus donos Castelhano.
Mas olha Rui Pereira, que co rosto
Faz escudo às galés, diante posto.
35
«Olha que dezessete Lusitanos,
Neste outeiro subidos, se defendem
Fortes, de quatrocentos Castelhanos,
Que em derredor, pelos tomar, se estendem;
Porém logo sentiram, com seus danos,
Que não só se defendem, mas ofendem.
Dino feito de ser, no mundo, eterno,
Grande no tempo antigo e no moderno!
36
«Sabe-se antigamente que trezentos
Já contra mil Romanos pelejaram,
No tempo que os viris atrevimentos
De Viriato tanto se ilustraram,
E deles alcançando vencimentos
Memoráveis, de herança nos deixaram
Que os muitos, por ser poucos, não temamos;
O que despois mil vezes amostramos.
37
«Olha cá dous Infantes, Pedro e Henrique,
Progénie generosa de Joane;
Aquele faz que fama ilustre fique
Dele em Germânia, com que a morte engane;
Este, que ela nos mares o pubrique
Por seu descobridor, e desengane
De Ceita a Maura túmida vaidade,
Primeiro entrando as portas da cidade.
38
«Vês o Conde Dom Pedro, que sustenta
Dous cercos contra toda a Barbaria.
Vês, outro Conde está, que representa
Em terra Marte, em forças e ousadia;
De poder defender se não contenta
Alcácere, da ingente companhia;
Mas do seu Rei defende a cara vida,
Pondo por muro a sua, ali perdida.
39
«Outros muitos verias, que os pintores
Aqui também por certo pintariam;
Mas falta-lhe pincel, faltam-lhe cores:
Honra, prémio, favor, que as artes criam.
Culpa dos viciosos sucessores,
Que degeneram, certo, e se desviam
Do lustre e do valor dos seus passados,
Em gostos e vaidades atolados.
40
«Aqueles pais ilustres que já deram
Princípio à geração que deles pende,
Pela virtude muito antão fizeram
E por deixar a casa que descende.
Cegos, que, dos trabalhos que tiveram,
Se alta fama e rumor deles se estende,
Escuros deixam sempre seus menores,
Com lhe deixar descansos corrutores!
41
«Outros também há grandes e abastados,
Sem nenhum tronco ilustre donde venham:
Culpa de Reis, que às vezes a privados
Dão mais que a mil que esforço e saber tenham.
Estes os seus não querem ver pintados,
Crendo que cores vãs lhe não convenham,
E, como a seu contrairo natural,
À pintura que fala querem mal.
42
«Não nego que há, contudo, descendentes
Do generoso tronco e casa rica,
Que, com costumes altos e excelentes,
Sustentam a nobreza que lhe fica;
E se a luz dos antigos seus parentes
Neles mais o valor não clarifica,
Não falta, ao menos, nem se faz escura;
Mas destes acha poucos a pintura.»
43
Assi está declarando os grandes feitos
O Gama, que ali mostra a vária tinta
Que a douta mão tão claros, tão perfeitos,
Do singular artífice ali pinta.
Os olhos tinha prontos e direitos
O Catual na história bem distinta;
Mil vezes perguntava e mil ouvia
As gostosas batalhas que ali via.
29. Vénus recompensa os portugueses (est. 18-39)
18
Porém a Deusa Cípria, que ordenada
Era, pera favor dos Lusitanos,
Do Padre Eterno, e por bom génio dada,
Que sempre os guia já de longos anos,
A glória por trabalhos alcançada,
Satisfação de bem sofridos danos,
Lhe andava já ordenando, e pretendia
Dar-lhe nos mares tristes, alegria.
19
Despois de ter um pouco revolvido
Na mente o largo mar que navegaram,
Os trabalhos que pelo Deus nascido
Nas Anfiónias Tebas se causaram,
Já trazia de longe no sentido,
Pera primo de quanto mal passaram,
Buscar-lhe algum deleite, algum descanso,
No Reino de cristal, líquido e manso;
20
Algum repouso, enfim, com que pudesse
Refocilar a lassa humanidade
Dos navegantes seus, como interesse
Do trabalho que encurta a breve idade.
Parece-lhe razão que conta desse
A seu filho, por cuja potestade
Os Deuses faz decer ao vil terreno
E os humanos subir ao Céu sereno.
21
Isto bem revolvido, determina
De ter-lhe aparelhada, lá no meio
Das águas, algũa ínsula divina,
Ornada d' esmaltado e verde arreio;
Que muitas tem no reino que confina
Da primeira co terreno seio,
Afora as que possui soberanas
Pera dentro das portas Herculanas.
22
Ali quer que as aquáticas donzelas
Esperem os fortíssimos barões
(Todas as que têm título de belas,
Glória dos olhos, dor dos corações)
Com danças e coreias, porque nelas
Influïrá secretas afeições,
Pera com mais vontade trabalharem
De contentar a quem se afeiçoarem.
23
Tal manha buscou já pera que aquele
Que de Anquises pariu, bem recebido
Fosse no campo que a bovina pele
Tomou de espaço, por sutil partido.
Seu filho vai buscar, porque só nele
Tem todo seu poder, fero Cupido,
Que, assi como naquela empresa antiga
A ajudou já, nestoutra a ajude e siga.
24
No carro ajunta as aves que na vida
Vão da morte as exéquias celebrando,
E aquelas em que já foi convertida
Perístera, as boninas apanhando;
Em derredor da Deusa, já partida,
No ar lascivos beijos se vão dando;
Ela, por onde passa, o ar e o vento
Sereno faz, com brando movimento.
25
Já sobre os Idálios montes pende,
Onde o filho frecheiro estava então,
Ajuntando outros muitos, que pretende
Fazer ũa famosa expedição
Contra o mundo revelde, por que emende
Erros grandes que há dias nele estão,
Amando cousas que nos foram dadas,
Não pera ser amadas, mas usadas.
26
Via Actéon na caça tão austero,
De cego na alegria bruta, insana,
Que, por seguir um feio animal fero,
Foge da gente e bela forma humana;
E por castigo quer, doce e severo,
Mostrar-lhe a formosura de Diana.
(E guarde-se não seja inda comido
Desses cães que agora ama, e consumido).
27
E vê do mundo todo os principais
Que nenhum no bem púbrico imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si sòmente, e a quem Filáucia ensina;
Vê que esses que frequentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florecente.
28
Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam sòmente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.
29
Vê, enfim, que ninguém ama o que deve,
Senão o que somente mal deseja.
Não quer que tanto tempo se releve
O castigo que duro e justo seja.
Seus ministros ajunta, por que leve
Exércitos conformes à pelejafrag
Que espera ter co a mal regida gente
Que lhe não for agora obediente.
30. A maravilhosa Ilha dos Amores (IX, 52-65)
52
De longe a Ilha viram, fresca e bela,
Que Vénus pelas ondas lha levava
(Bem como o vento leva branca vela)
Pera onde a forte armada se enxergava;
Que, por que não passassem, sem que nela
Tomassem porto, como desejava,
Pera onde as naus navegam a movia
A Acidália, que tudo, enfim, podia.
53
Mas firme a fez e imóbil, como viu
Que era dos Nautas vista e demandada,
Qual ficou Delos, tanto que pariu
Latona Febo e a Deusa à caça usada.
Pera lá logo a proa o mar abriu,
Onde a costa fazia ũa enseada
Curva e quieta, cuja branca areia
Pintou de ruivas conchas Citereia.
54
Três fermosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na fermosa Ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.
55
Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde ũa mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está pera afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.
56
Mil árvores estão ao céu subindo,
Com pomos odoríferos e belos;
A laranjeira tem no fruito lindo
A cor que tinha Dafne nos cabelos.
Encosta-se no chão, que está caindo,
A cidreira cos pesos amarelos;
Os fermosos limões ali cheirando,
Estão virgíneas tetas imitando.
57
As árvores agrestes, que os outeiros
Têm com frondente coma ennobrecidos,
Álemos são de Alcides, e os loureiros
Do louro Deus amados e queridos;
Mirtos de Citereia, cos pinheiros
De Cibele, por outro amor vencidos;
Está apontando o agudo cipariso
Pera onde é posto o etéreo Paraíso.
58
Os dões que dá Pomona ali Natura
Produze, diferentes nos sabores,
Sem ter necessidade de cultura,
Que sem ela se dão muito milhores:
As cereijas, purpúreas na pintura,
As amoras, que o nome têm de amores,
O pomo que da pátria Pérsia veio,
Milhor tomado no terreno alheio;
59
Abre a romã, mostrando a rubicunda
Cor, com que tu, rubi, teu preço perdes;
Entre os braços do ulmeiro está a jocunda
Vide, cuns cachos roxos e outros verdes;
E vós, se na vossa árvore fecunda,
Peras piramidais, viver quiserdes,
Entregai-vos ao dano que cos bicos
Em vós fazem os pássaros inicos.
60
Pois a tapeçaria bela e fina
Com que se cobre o rústico terreno,
Faz ser a de Aqueménia menos dina,
Mas o sombrio vale mais ameno.
Ali a cabeça a flor Cifísia inclina
Sôbolo tanque lúcido e sereno;
Florece o filho e neto de Ciniras,
Por quem tu, Deusa Páfia, inda suspiras.
61
Pera julgar, difícil cousa fora,
No céu vendo e na terra as mesmas cores,
Se dava às flores cor a bela Aurora,
Ou se lha dão a ela as belas flores.
Pintando estava ali Zéfiro e Flora
As violas da cor dos amadores,
O lírio roxo, a fresca rosa bela,
Qual reluze nas faces da donzela;
62
A cândida cecém, das matutinas
Lágrimas rociada, e a manjerona;
Vêm-se as letras nas flores Hiacintinas,
Tão queridas do filho de Latona.
Bem se enxerga nos pomos e boninas
Que competia Clóris com Pomona.
Pois, se as aves no ar cantando voam,
Alegres animais o chão povoam.
63
Ao longo da água o níveo cisne canta;
Responde-lhe do ramo filomela;
Da sombra de seus cornos não se espanta
Acteon n' água cristalina e bela.
Aqui a fugace lebre se levanta
Da espessa mata, ou tímida gazela;
Ali no bico traz ao caro ninho
O mantimento o leve passarinho.
64
Nesta frescura tal desembarcavam
Já das naus os segundos Argonautas,
Onde pela floresta se deixavam
Andar as belas Deusas, como incautas.
Algũas, doces cítaras tocavam;
Algũas, harpas e sonoras frautas;
Outras, cos arcos de ouro, se fingiam
Seguir os animais, que não seguiam.
65
Assi lho aconselhara a mestra experta:
Que andassem pelos campos espalhadas;
Que, vista dos barões a presa incerta,
Se fizessem primeiro desejadas.
Algũas, que na forma descoberta
Do belo corpo estavam confiadas,
Posta a artificiosa formosura,
Nuas lavar se deixam na água pura.
31. O significado da Ilha dos Amores (IX, 88-91)
88
Assi a fermosa e a forte companhia
O dia quási todo estão passando
Nũa alma, doce, incógnita alegria,
Os trabalhos tão longos compensando.
Porque dos feitos grandes, da ousadia
Forte e famosa, o mundo está guardando
O prémio lá no fim, bem merecido,
Com fama grande e nome alto e subido.
89
Que as Ninfas do Oceano, tão fermosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra cousa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta Ilha.
90
Que as imortalidades que fingia
A antiguidade, que os Ilustres ama,
Lá no estelante Olimpo, a quem subia
Sobre as asas ínclitas da Fama,
Por obras valerosas que fazia,
Pelo trabalho imenso que se chama
Caminho da virtude, alto e fragoso,
Mas, no fim, doce, alegre e deleitoso,
91
Não eram senão prémios que reparte,
Por feitos imortais e soberanos,
O mundo cos varões que esforço e arte
Divinos os fizeram, sendo humanos.
Que Júpiter, Mercúrio, Febo e Marte,
Eneas e Quirino e os dous Tebanos,
Ceres, Palas e Juno com Diana,
Todos foram de fraca carne humana.
32. O caminho da imortalidade (IX, 92-95)
Tétis revela ao Gama a Máquina do Mundo
ilustração de Carlos Alberto Santos
92
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes, Heróicos e de Magnos.
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.
93
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
94
Ou dai na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não dêem o dos pequenos,
Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Contra a lei dos imigos Sarracenos:
Fareis os Reinos grandes e possantes,
E todos tereis mais e nenhum menos:
Possuireis riquezas merecidas,
Com as honras que ilustram tanto as vidas.
95
E fareis claro o Rei que tanto amais,
Agora cos conselhos bem cuidados,
Agora co as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados.
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.
33. O regresso a Lisboa (X, 142-144)
Vasco da Gama apresenta a D. Manuel as primícias [primeiros produtos] da Índia.
142
«Até 'qui Portugueses concedido
Vos é saberdes os futuros feitos
Que, pelo mar que já deixais sabido,
Virão fazer barões de fortes peitos.
Agora, pois que tendes aprendido
Trabalhos que vos façam ser aceitos
Às eternas esposas e fermosas,
Que coroas vos tecem gloriosas,
143
«Podeis-vos embarcar, que tendes vento
E mar tranquilo, pera a pátria amada.»
Assi lhe disse; e logo movimento
Fazem da Ilha alegre e namorada.
Levam refresco e nobre mantimento;
Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.
144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.
34. “Não mais musa,…” – Camões despede-se da Musa e dirige-se a D. Sebastião (X, 145-146)
Camões lendo Os Lusíadas a D. Sebastião
Litografia de António Ramalho, 1893.
145
Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada e a voz enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.
146
E não sei por que influxo de Destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio posto,
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.
35. Considerações finais do Poeta sobre as letras e as armas (X, 154‐156)
154
Mas eu que falo, humilde, baxo e rudo,
De vós não conhecido nem sonhado?
Da boca dos pequenos sei, contudo,
Que o louvor sai às vezes acabado.
Nem me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente,
Cousas que juntas se acham raramente.
155
Pera servir-vos, braço às armas feito,
Pera cantar-vos, mente às Musas dada;
Só me falece ser a vós aceito,
De quem virtude deve ser prezada.
Se me isto o Céu concede, e o vosso peito
Dina empresa tomar de ser cantada,
Como a pres[s]aga mente vaticina
Olhando a vossa inclinação divina,
156
Ou fazendo que, mais que a de Medusa,
A vista vossa tema o monte Atlante,
Ou rompendo nos campos de Ampelusa
Os muros de Marrocos e Trudante,
A minha já estimada e leda Musa
Fico que em todo o mundo de vós cante,
De sorte que Alexandro em vós se veja,
Sem à dita de Aquiles ter enveja.
Camões lendo Os Lusíadas aos Frades de São Domingos
por António Carneiro, 1927.
Fonte:
Os Lusíadas / de Luís de Camões. Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. 4.ª ed., Lisboa: Instituto Camões, 2000.