2022/07/28

De manuscritos antigos, de textos inéditos e, principalmente, do estimar os poemas de Camões


Santo Agostinho hesitando entre o sangue de Cristo e o leite da virgem, 1498-99

Francesco Francia

Bologna, Pinacoteca Nazionale.



2022 é um Ano Camões, pois celebram-se os 450 anos da publicação de Os Lusíadas. A efeméride tem suscitado congressos, colóquios, dossiês temáticos em periódicos, exposições, concertos, maratonas de leitura da epopeia... – vejam-se as Efemérides neste blogue.

Entre esses eventos, ocorreu a 3 de julho a terceira Conversa dos Capuchos, no âmbito do Festival de Música dos Capuchos. A sessão intitulada O impulso épico de Camões e moderada por Carlos Vaz Marques contou com a presença do poeta e professor universitário Nuno Júdice, autor da coletânea de ensaios Camões: por cantos nunca dantes navegados (Sibila, 2019), e a escritora Isabel Rio Novo, futura autora de uma biografia do Poeta. A atriz Lia Gama deu voz ao poema "Camões dirige-se aos seus contemporâneos" da autoria de Jorge de Sena e a passagens de Os Lusíadas.

No decorrer da conversa no Convento dos Capuchos, Nuno Júdice leu o soneto “De Luis de Camões, a Christo atado a coluna”, sobre o qual não teria dúvidas da autoria camoniana, mas que teria reservas quanto ao seu ineditismo, carecendo da confirmação de especialistas. Inquirido sobre a possibilidade de publicá-lo algures, anuiu que talvez um dia viesse a fazê-lo.

Durante a leitura do poema, o professor e investigador Felipe de Saavedra, da Rede Camões na Ásia (RCnA), sentado a meu lado, partilhou a sua surpresa sobre o soneto ser apresentado como inédito, pois reconheceu-o imediatamente. O caso digno de memória teria ficado por aí, não fora o moderador da conversa, Carlos Marques, ter publicado no dia 13 do mesmo mês e na sua página do Facebook o post UM POEMA PERDIDO DE CAMÕES com a revelação de ter sido descoberto “nada mais, nada menos do que um poema inédito de Camões.”

A leitura desse post de Carlos Vaz Marques a meio do dia, e depois das notícias online disseminadas a partir da agência LUSA (v. lista de principais títulos aqui), motivou-me a reagir com o breve post UM INÉDITO TRIPLAMENTE PUBLICADO no blogue Luís de Camões. Desse modo, após uma conversa informal com o Professor Felipe de Saavedra, confirmei que o soneto de Camões anunciado nesse dia por vários órgãos de imprensa portugueses como "inédito" e recém-descoberto, fora já publicado em pelo menos três instâncias.

Quanto ao principal desta história e ao mais que se lhe seguiu, o Professor Nuno Júdice tudo evoca no seu artigo agora publicado no Jornal de LetrasUm inédito de Camões: com alecrim de entrada e manjerona à sobremesa (JL 1352, pp. 6-7), e em vez de um texto do genial Poeta, temos já dois, um soneto e um vilancete.


O balanço é francamente positivo: divulgaram-se os textos, mal conhecido o primeiro, inédito o segundo; elaboraram-se comentários sobre Camões religioso, faceta menos conhecida e esperada; pesquisam-se obras pictóricas e de natureza religiosa relacionadas com os temas presentes, ou inspiradores da conceção da obra camoniana.




Divulgamos aqui o texto do vilancete publicado no referido artigo do JL, complementado com uma das mais antigas pinturas que encontrámos, até agora, da autoria do artista bolonhês Francesco Francia – "A adoração da Criança” e/ou “Santo Agostinho hesitando entre o sangue de Cristo e o leite da virgem”, executada cerca de 1498-99.

Embora esta obra seja mais conhecida pelo primeiro nome, apresenta também uma segunda cena, a da direita do painel, que expressa a hesitação do Santo em devotar-se a Maria (o leite da Virgem) ou ao filho de Deus (o sangue de Cristo), dualidade que configura o maravilhamento do poema de Camões. Um quadro duplo, duas figuras máximas do Cristianismo, que nos revelam Camões como “Poeta da Fé” (título do estudo e antologia de Mendes dos Remédios. – Coimbra, 1924), seja de uma religiosidade menos ortodoxa ou mais ortodoxa, consoante as interpretações.

Bom Ano Camões!
Com revelações, com publicações, com leituras.



O VILANCETE:


MOTE

Duas grandes maravilhas
de que se espantam os Céus:
parir Virgem e nascer Deus.


VOLTAS

Vede se viu criatura
tal caso, ou se aconteceu:
Deus, de que tudo nasceu,
nascer duma Virgem pura.

Pois, Virgem, paristes vós
tanto bem, dai do peito
leite a quem
co seu nos dá sangue a nós.

Ambos ordenais a luz
que a todo o mundo aproveite:
Vós só no colo co leite,
Ele co'o sangue na Cruz.

Pois, Virgem, nasce de vós
tanto bem, dai do peito
leite a quem
co sangue nos salva a nós.

LUÍS DE CAMÕES


Fonte: Biblioteca da Ajuda, Lisboa. – Cota 52-II-42.
Reproduzido em: JÚDICE, Nuno – Um inédito de Camões: com alecrim de entrada e manjerona à sobremesa, in JL – Jornal de Letras, Ano XLII, n.º 1352, de 27.07 a 9.08.2022, Portugal, pp. 6-7.




A adoração da Criança
Santo Agostinho hesitando entre o sangue de Cristo e o leite da virgem
1498-99

– Tempera em painel, 52 x 169 cm, Bologna: Pinacoteca Nazionale.

Obra de 

Francesco Francia, 1450-1517