2022/08/02

CELESTINA MODERNA EM LISBOA


A alcouceira, por Gerrit van Honthors

Imagem utilizada no início da parte "Fama e infâmia da 'ars lenandi'" (p. 146) da obra
de Felipe de Saavedra.

Na obra referida a pintura de Honthorst surge intitulada como

A Celestina, o cliente e a tangedora, 1625. 

Pintura a óleo de Gerrit van Honthors

ilustrando exemplarmente a Carta VI, provavelmente inspirada no 
Libro de Calixto e Melibea y de la puta vieja Celestina (c.1520) de Fernando de Rojas.



Uma carta do poeta Luís de Camões conservada no Códice Varejão da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP 9492, 156r-157v) foi revelada em 1925 pelo Professor e camonista José Maria Rodrigues. Todavia, o texto seria votado ao ostracismo, permanecendo desconhecido dos leitores não especializados durante quase mais uma centúria.
De facto, embora a epístola “tivesse sido comentada e citada fragmentariamente” (SAAVEDRA, 2022, p. 42), apenas viria a ser publicada aquando da efeméride dos 450 anos da publicação de Os Lusíadas, este ano de 2022. 
Este extraordinário texto foi conservado ou "ocultado" mais de 470 anos, apenas tendo sido dada a conhecer este ano por Marcia Arruda Franco, na obra coletiva por si coorganizada – Reescrever o século XVI: para uma história não oficial de Camões (FRANCO & RIBEIRO Filho, 2022, pp. 231-237; 250-262) em que a Professora faz uma “proposta de edição”, e, simultaneamente, por Felipe de Saavedra com a “edição crítica, analítica e comentada” na Celestina em Lisboa, o volume I de cinco que constituem o Epistolário Magno de Luís de Camões (SAAVEDRA, 2022, 305 pp.).

Disponibilizamos aqui uma versão traduzida em português atual, a partir do desdobrável da edição de SAAVEDRA, o qual contem o fac-símile da carta e a respetiva transcrição semi-paleográfica, texto que obtivemos a partir do Autor.


CELESTINA (MODERNA) EM LISBOA


Para que nem tudo seja falar-vos com siso, após as notícias que vos mandei de África e da Índia que cá chegaram, agora vos mando estas de folgar, que à orelha vos hajam de soar melhor. E ainda que escrever-vos isto seja intriga baixa, e de baixo assunto, pois é difamar putas, contudo eu não terei culpa alguma se ma não causardes vós com me denunciardes, porque eu o escrevo só para vós, com quem posso e devo falar tudo. E assim, com esta precaução de segredo, para que não seja necessário ficardes vós culpado comigo, nem eu desculpado convosco, e que não seja eu destas coisas o mais diligente solicitador desta terra, onde nunca faltam más-línguas que vos fazem tudo para vos danar.


Bem sabeis já como é entrada nesta cidade Madama del Puerto, com a Senhora Barbora sua filha, e também sabeis que este sobrenome “del Puerto” não o ganhou ela por cem mil milagres que aqui fizesse, onde por muito tempo residiu em seu ofício, mas por cem mil velhacarias que lhe renderam cem mil açoites que por elas lhe zurziram nas costas, com pregão. Porque a Senhora Barbora foi mais vezes cosida e renovada por Sua Madre que umas botas de um escudeiro, que assim a vendia por boa moeda. E, porém, à puta velha, apanhada em flagrante, chicotearam-lhe as costas com anúncios de trombetas. Até que por vários casos, após muitos acontecimentos, tornou aqui a aportar a Lisboa. Ó má Lisboa, que és um ninho velho, e domicílio

antigo de putas antigas! E aqui, como dizem das cegonhas que as moças mantêm as velhas, foi logo a Senhora Barbora exibida por estas paragens, e requestada por alguns novatos, que a não conheciam, que aos veteranos não podia ela enganar. Para estes modernos que eu digo, usou logo a puta velha de um ardil muito bom, que foi fazer a filha casada com um tal Mártir de Alentejo, que não reside aqui. E diz ela aos seus devotos que isto é muito conveniente, e assim é, pois com este estratagema abre e fecha quando quer as portas, e se nega, se defende, e ofende, e espanta os tristes dos cachorrinhos novos que com ela gastam o seu dinheiro. Com estes tem ela seus tratos e comércios, e com os mundanos experientes, que sabem da fraude, tem ela seus passatempos. E a velha manda a Senhora Barbora tanger e cantar uma cantiga triste.

E olhai esta declaração, que nem Ascênsio nem Donato a poderiam dar melhor. Os más-línguas de agora, se não entremetem o seu latinzinho, acham que não escrevem bem. E eu assim o faço, imitando mais o seu estilo do que o meu. Porque já em escrever-vos ganho algum crédito, e vós já me gabastes mais do que eu vos gabo: isto basta para vos escrever agora como eu quiser, sem guardar ordem, nem ordens, conforme ao lugar e estado de religioso em que agora viveis.

E eu vivo noutro estado, o de um morcego, que é sem ser ave nem rato. A culpa disto dá-la-ão uns a mim, o triste que passa a pena do escrever e a do tormento; os outros aos acontecimentos da fortuna, que não respondem sempre à natureza de cada um, ainda que esta seja boa; outros a darão aos corações humanos, que nunca se satisfazem; mas enfim, eu sei de quem a culpa é.



E tornando ao nosso tema, digo que a Senhora Barbora, e a puta de su Madre, vão tão avançadas no putarismo que podem ler de cátedra. E com os seus ditos graciosos, ora portugueses ora castelhanos, nunca lhes falta onde empregar a sua ciência e as suas manhas, porque neste cesto roto de Lisboa, onde elas tudo lançam, sabem bem que cada panela tem a sua tampa, e que sempre neste mar magno morrem madraços que vêm picar nos seus anzois, com os quais elas pescam de muitas maneiras. E agora anda tudo alvoroçado com estas armadas que partem, e na água revolta pesca melhor o pescador. Elas também com ardis apanham esses coitados, que hão de ir para fora sobre as águas do mar, uns enfeitadinhos a quem, como sabeis, se pagam soldos e pensões adiantadas, com outras mercezinhas. E tão bem os tratam, como se eles fossem franceses. Depois de lhes esvaziarem os bolsos, de bem vestidos e louçãos que andam, os tomam e lhes despem até os calções do uniforme.

E destes, os que agora dão mais nas vistas e mostras são os ceitis, que assim chamamos aos que agora se aprontam para ir para Ceuta. E estão as casas destas damas todas cheias destes ceitis, moeda de cobre de que elas fazem alguma prata. E estas falsas revivem para dar morte, que, como o trigo, se não apodrecer na terra não dá fruto nem espiga, também estas velhacas parece que quanto mais podres de seus males e doenças, amortalhadas nos seus lençóis, mais remoçam e reverdecem. Porém, já sabeis que a serpente se esconde na erva, como se vê nelas cada dia, que são peçonhentíssimas, mas mesmo como elas são, são desejadas, amadas e requestadas pelos seus amantes, mais perdidos do que elas.

E das putas em clausura, as mais populares são a Isabel Nunes de Tarifa, a Surradeira, a Marquesa, a Sintroa, a Antónia Bras, e as que chamam as folionas. Há também outras claustrais, mas mais autorizadas, as freiras, Barbora, Luzia e outras desta laia. Há outras ainda de mais autoridade, estas dão a sua casa aonde se pagodeia, porque para as pessoas não servem por serem já velhas, tais como Guiomar Mendes, Felipa de Barros, Beatriz Flamenga, com as suas filhas e as amigas delas. E às casas destas se vai fazer toda a imundice que digo.

O Triunfo de Baco (1650) por Michaelina Wautier
O Triunfo de Baco (1650) por Michaelina Wautier
Aconteceu, pois, que esta semana, uns certos ceitis (que pela honra deles não nomeio) encomendaram um pagode real com Madama del Puerto e sua filha Barbora, e com as velhacas da Surradeira e da Marquesa. E para isto contribuíram com o mais que eles puderam juntar, com que fizeram abastada despesa de comer e beber, para ser tudo levado a Orta Navía, em Alcântara, onde havia de ser a paródia. E para apimentar o ato, e ser a coisa mais crespa, saíram de suas casas em plena luz, quando o sol radiante já esparzia os seus doirados raios sobre a face da terra, nesta ordem e concerto, a saber: as damas iam ao varonil, em trajo de homens cavalheiros, em montadas muito guerreiras que eles lhes foram buscar, com penachos recamados de ouro e prata, por ir a coisa meia em prata e meia no cobre dos ceitis. Porque ainda que os senhores eram todos dos ceitis, um deles, que ia principalmente por servidor da Marquesa, era mulato, tinha “o pai de Ronda e a Mãe de Antequera”, ou melhor, da Guiné. A puta velha, por guardar mais o decoro e majestade de Madre, ia de cadeirinha sobre a albarda, porém louçã e muito enfeitada, e coberta com uma capa de escarlata. Mas, como se diz, é escusada a barrela na cabeça do asno, porque ela não deixava de parecer quem é, ou parecia a falsa Cábria quando a vestiram nos trajos da outra. E desta maneira chegaram a Navía, onde se vazaram os odres como alcatruzes, que eram cheios, como se disse, não de água, mas de muito vinho, com que de todo, segundo a fama, desenfadaram os seus corpos. E dou-vos fé que me espantaram as coisas que então fizeram, muito notáveis, que não são para vos contar. E não vos pareça que ficou a Madre velha de todo de fora, porque os cavalheiros eram em maior número do que as damas: puseram-se a fazer festa, para que também fosse consolada.

Saíram-lhes diante uns almogávares, que souberam desta ida, os quais eram clientes regulares. E vós os conheceis, os amantes destas damas: o primo coirmão da Surradeira, e outros. Decidindo afrontarem os ceitis de alguma maneira, perpassaram por eles muitas vezes, a rédeas tendidas, fazendo muito pó, e roçando-se com as damas, que iam disto receosas em extremo, por cuidarem que fosse isto caminho para algumas brigas, coisa por certo que as mais namora. Porém, os cavalheiros foram logo todos reconhecidos pelos outros, e ficaram bons companheiros. E assim, dissimulando cada um a sua mágoa, foram-se retirando: os rufias tornaram a Lisboa, e a outra companhia seguiu a sua rota, agasalhando-se naquela noite cada amante com a sua amada, e diz-se que foram provocados pelos outros com agravos amorosos. Outros recontros notáveis são passados entre matantes e estas senhoras minhas, espero informar-me bem por um matador que me há de contar tudo, então vo-lo escreverei mais largamente. E por agora contentai-vos com isto, pois creio que vi algo digno de ser contado.

O vosso homem vos leva esta resposta, quanto à minha não esqueça vossa mercê de me escrever longamente, como eu faço, sem medo nem vergonha.

Beijo as mãos de vossa mercê desta aldeia de Lisboa, a melhor do Reino, a 20 de maio de 1551 anos —


Leitura modernizada por Felipe de Saavedra
Fonte: Editora Canto Redondo



Luís Vaz de Camões
Carta VI