"Se a felicidade pudesse ser encontrada em algum lugar da Terra, tinha que ser lá."
O Império Proibido, 1932
Camões e Macau num romance neerlandês
O Reino Proibido / J. Slauerhoff. – Trad. Patrícia Couto, Arie Pos. Lisboa: Teorema, 1997.Ed. original: Het verboden rijk. – Rotterdam: Uitgave Nijgh & Van Ditmar, 1932.
“O romance revela um mundo em decomposição e em conflito, dominado pela animosidade entre chineses e portugueses e é constituído por três linhas narrativas que se entrecruzam e se sobrepõem. Uma primeira relata a história de Macau, desde os acontecimentos que por volta de 1540 levaram à sua fundação até ao início deste século. À imagem dada segue a linha de ascensão e queda apresentada na obra de C. A. Montalto de Jesus, Historic Macao: international traits in China old and new (1926). Trata- e de uma reedição da obra publicada em 1902, aumentada com uma parte bastante crítica em relação à política governamental e ao futuro de Macau. Logo após a sua publicação foi proibida e queimada pelas autoridades [Nota: “Uma primeira edição portuguesa da versão apreendida em 1926, Macau Histórico, foi publicada em 1990 pela Livros do Oriente”, Macau. – 350 p.; il. (25 cm)]. Não obstante, Slauerhoff adquiriu um exemplar do livro durante a sua primeira visita a Macau. Utilizou-o como fonte de informações acerca da história da colónia portuguesa. Mais uma vez, tal como foi o caso com a biografia de Camões da autoria de Schneider, a obra fornecia uma visão e interpretação dos acontecimentos históricos que correspondia à visão do próprio Slauerhoff. E mais uma vez ele utilizou os dados para servir os seus intentos, de forma aleatória, transfigurando-os e deslocando-os no tempo e no espaço. Assim, encontramos no Prólogo que trata da fundação de Macau dois protagonistas chamados Farria e Mendes Pinto e um remake do episódio da vingança de António de Farria em resposta à destruição de Liampó pelos chineses, como relatado por Fernão Mendes Pinto na sua Peregrinação. Slauerhoff baseou-se no resumo do episódio que encontrou em Historic Macao.
Uma segunda linha narrativa descreve a vida de Luís de Camões na corte de Lisboa, a viagem de navio para o desterro, o naufrágio (aqui situado em frente à baía de Macau), um segundo exílio – desta vez para a China – e a travessia pelo deserto chinês. As duas linhas juntam-se quando Camões chega a Macau.
A terceira linha narrativa conta a vida dum radiotelegrafista anónimo de origem irlandesa, que nos inícios dos anos trinta do nosso século se encontra embarcado no Mar de China. O radiotelegrafista apanha sinais misteriosos que mais tarde se mostram ligados à vida de Camões. Através dos sinais, o espírito do poeta consegue tomar conta do espírito do radiotelegrafista. Também ele sofre um naufrágio e é obrigado a atravessar o deserto chinês. Ambos vagueiam à beira da morte pelo deserto, onde se dá por fim uma «sobreposição» das duas personagens. As duas personagens confluem e no corpo do radiotelegrafista (mas vestido nas roupas de Camões) conseguem voltar a Macau, onde o radiotelegrafista se liberta da influência avassaladora do poeta, que se refugia na sua gruta, dedicando-se exclusivamente à composição da sua epopeia. O radiotelegrafista volta para Hong Kong para retomar a sua vida, na ciência de que os espíritos do passado não o podem libertar do seu próprio destino.
O que pode parecer um romance histórico é, pelo contrário, um complexo e arrojado romance simbólico que trata do problema da identidade do homem moderno e da questão da inspiração poética. O radiotelegrafista pode ser interpretado como mais um alter ego do autor, desta vez na sua qualidade de poeta maldito moderno que se deixa inspirar por poetas malditos de outros tempos. A inspiração procurada ameaça a identidade do poeta moderno.
É com este mesmo sentido simbólico que no romance a linguagem é sempre apresentada como um instrumento inadequado, que conduz à falta de comunicação, ao isolamento e à morte. Também a linguagem está sujeita à corrosão do tempo. As palavras perderam a sua força, elas desvalorizaram-se na troca diária. No romance, praticamente não encontramos diálogos. Também as cartas nunca são respondidas, as ordens e conselhos não são ouvidos por ninguém. A profunda crise em que os dois protagonistas se encontram é a dum mundo fragmentado, sem coesão interna, porque foi o verbo, a palavra no sentido de logos, que perdeu o seu poder ordenador e criador. Quer isto dizer que também a palavra é fragmentada e que cabe aos protagonistas restaurá-la.
A busca desta palavra matriz é uma longa e perigosa expedição, tal como fora a viagem de Vasco da Gama. Desta vez o rumo não leva ao outro lado do mundo, mas para dentro, para o subconsciente. Abandonado no deserto chinês, numa alucinação próxima da morte, o radiotelegrafista é possuído por Camões, seu subconsciente é o recetor do canto do poeta português. É preciso procurar nas ruínas do passado, da tradição literária – aqui representada na figura de Luís de Camões –, os resíduos para construir um novo canto. O radiotelegrafista sobrevive porque é salvo por Camões e porque se salva de Camões, expulsando-o. Se necessita da tradição literária, também precisa de se distinguir dela para poder construir a sua própria identidade.
O texto que perverte Os Lusíadas, é ao mesmo tempo construído à base de fragmentos da obra lírica de Camões, recorrendo a palavras, imagens ou motivos do poeta português. Este é o romance em que Slaueihoff é «possuído» por Camões, de quem, como um vampiro, extrai o canto.”
Patricia Couto
In: “Camões e Macau num romance neerlandês”
em Camões: revista de letras e culturas lusófonas, n.º 7 – Macau
(out.-dez. 1999), 115-117.
- Slauerhoff, J. - [O Reino Proibido] - capa de ed. holandesa.
- Slauerhoff, J. J. - [O Reino Proibido] - capa de ebook em holandês.
- Um dos primeiros mapas minuciosos de Macau, 1639, pelo cosmógrafo António de Mariz Carneiro.
- Slauerhoff vestindo indumentária chinesa (in Col. Letterkundig Museum).
- Jan Jacob Slauerhoff e a baliarina Darja Collin, com quem esteve casado entre 1930-35.
- Panorama de Macau, em bilhete-postal, da coleção do escritor (in Literatuur Museum).