2023/03/04

O pintor Fernão Gomes, 1548-1612





Aparição de Cristo à Virgem

óleo sobre madeira

não assinado, c. 1600

230 x 250 cm


"De entre os pintores portugueses - ou radicados em Portugal - da segunda metade do século XVI é, sem dúvida, Fernão Gomes um dos mais carateristícos. O seu estilo, a sua «maneira» valem por uma assinatura.

Quando em 1973 [Fernão Gomes: um pintor no tempo de Camões: a pintura maneirista em Portugal. Lisboa: Comissão Executiva do IV Centenário da publicação de “Os Lusíadas”.] dedicámos a este mestre uma monografia, longe estávamos de imaginar quanto a sua obra se viria a alargar através dos estudos que, posteriormente, Vitor Serrão e nós próprios efetuámos, conjunta ou individualmente e que, a partir deste momento, ainda mais se amplia. 

 

[Fernão Gomes, 1548-1612

Nascido em Albuquerque, Castela, entre 1548 e 1553, Hernán Gómez Roman - o seu nome de nascimento - provável discípulo de Luís de Morales, em 1565, terá trabalhado em Évora, como mero adjunto de «El - Divino», no grande retábulo do Convento de S. Domingos, encomendado por frei Domingos de Lisboa.

Datam deste período as suas relações com os condes de Vimioso, amigos de Morales, que encomendam, em 1570 a Fernão Gomes, já radicado em Portugal, o retrato de Luís de Camões, menos de um ano antes regressado a Portugal e que devia figurar numa 1ª edição - jamais publicada - de Os Lusíadas. Assim, o nome do pintor ficaria para sempre associado ao Poeta, embora ainda hoje, onze anos volvidos sobre o estudo circunstanciado que dedicámos a esta primeira obra portuguesa de Gomes, haja quem procure ver na assinatura da cópia setecentista do retrato do épico um outro pintor, homónimo de um mítico Fernão Gomes da primeira metade de Quinhentos.

Ao identificarmos aqui mais um painel, dos melhores de Fernão Gomes, a «Aparição de Cristo à Virgem» de uma colecção particular da antiga Punhete, julgamos poder definitivamente eliminar os equívocos que ainda rodeiam o nome do pintor.

Se Portugal já não [sic] possui a fidelíssima cópia do retrato de Camões, ainda não há muitos anos à venda no Brasil, pode orgulhar-se hoje de ter encontrado uma das obras mais representativas do período de maturidade do principal pintor do nosso 2.º Maneirismo, artista régio de Filipe II (I de Portugal) que só no seu compatriota Francisco Venegas encontrou um verdadeiro émulo.

A atribuição a Fernão Gomes do painel em estudo, descoberto pela Associação para a Reconstrução e Instalação da Casa - Memória de Camões em Constância, baseia-se em dois fatores: um de ordem estética, qual seja a "maneira" do pintor, a sua ideologia - imagética, outra que se revela na originalidade - quase herética - do tratamento do tema.

A comparação da figura da Virgem, no desenho típico das mãos e do rosto, aproxima o painel em estudo da «Ascenção», do Museu de Arte Sacra do Funchal, obra de cerca de 1573.

Note-se que a acentuada influência nórdica das composições do mestre se deve à sua estada em Delft, entre 1570 e 1572, quando estudou com o pintor holandês Anthonie Blocklandt (ou A.Van Montfoort). O painel «Aparição de Cristo à Virgem» patenteia essa influência e supomos mesmo que Fernão Gomes (1533 - 1598) se terá inspirado em gravuras nórdicas, provavelmente nas de Cornelis Cort. A elas teria já recorrido para o apologético «Triunfo da Obediência», pintado, cerca de 1588, para o Convento dominicano da Anunciada, e de que conhecemos o desenho, por nós amplamente estudado, que pertence às colecções do Museu Nacional de Arte Antiga.

A figura da mulher idosa, à direita (na qual julgamos ver Rebeca), é decalcada da velha que aparece à esquerda no «Nascimento da Virgem», dos Jerónimos, personagem que se repete na mulher que traz alimento a Santa Ana, no desenho do mesmo tema, do Museu de Arte Antiga, que recentemente divulgámos. Admitindo que este é um estudo preparatório para o painel hieronimita, datámo-lo, também, de cerca de 1594.

O personagem em primeiro plano, à direita (S. João Baptista), olhando o observador e transpondo para o exterior o aspaço limitado do painel, aparenta-se pela atitude com a jovem, extremamente bela, que se vê sentada numa cadeira, também â direita, no «Nascimento da Virgem», de Belém. Supomos ver, tanto numa figura como na outra, dois retratos, sendo provável que se trate do próprio pintor no painel «Aparição de Cristo à Virgem», aqui em análise.

O velho, de longas barbas (Adão), repete-se nas figuras do extraordinário desenho «Ascenção», do Museu de Arte Antiga.

A seu lado, a mulher semidespida (Eva), cujo perfil, bem maneirista, recorda o da mulher, em primeiro plano, à direita, no já citado «Nascimento da Virgem», dos Jerónimos.

Toda a sequência de anciãos do Antigo Testamento, que acompanham Cristo , reencontra-se , tanto na «Ascenção» do Funchal, como no desenho do mesmo tema (datado de 1599) e no «Pentecostes», cerca de 1599, ambos no Museu de Arte Antiga.

A figura de Cristo deve ter servido para decalque da «Descida de Cristo ao Limbo», obra da oficina de Fernão Gomes, pertencente a uma colecção particular.

Brevemente expostas estas afinidades, que nos permitiram a atribuição a Fernão Gomes, importa considerar o tema e procurar identificar os personagens representados.

Como é frequente, Cristo aparece a sua Mãe acompanhado por figuras do Antigo Testamento. Aqui há uma excepção na sua presença «anómala» do Bom Ladrão e de S. Longinus. Para além dos já identificados, Adão, Eva, S. João Baptista e Rebeca, vêem-se, junto a esta, dois meninos, provavelmente Esaú e Jacob, seus filhos, e um ancião, Isaac.

À direita, ao fundo, transportando um peixe, numa representação invulgar, Jonas.

Junto a este, com uma espada ao ombro (?), Abraão (a espada foi a arma com que se preparou para sacrificar seu filho Isaac). Mais atrás, uma estranha figura solar, que julgamos tratar-se de Josué, que concluiu o êxodo iniciado por Moisés.Ele é, segundo Réau, «um dieu solaire comme Samson».

Acolitando Cristo e transportando a Cruz, figura o Bom Ladrão e, junto dele, um homem de capacete que supomos tratar-se de S. Longinus, o soldado que, com a lança, feriu Cristo Crucificado.

Atrás da Virgem, bem em evidência, o rei David, com a harpa, e Moisés.

Toda a cena revela um tratamento invulgar, mas típico de Fernão Gomes. É também rara a sua maneira de representar a «Anunciação» no painel dos Jerónimos, com o anjo prostrado, em ato de vassalagem (ou adoração?) medieval do cavaleiro à sua dama, contraditando todas as disposições da última sessão do Concílio de Trento, de 1563.

Terá sido este painel o que o P.e Veríssimo de Oliveira, em 1830, refere ao descrever sobre a capela da Quinta de Santa Bárbara, de Constância: "... tem um grande painel da descida de Jesus Cristo ao Limbo, onde se vêem os antigos Patriarcas representados ao natural pelo hábil e delicado pincel de Grão Vasco..."?

A confusão do tema é natural e no tempo em que este texto foi escrito as atribuições a Grão Vasco eram constantes.

É de admitir que, sendo a Quinta de Santa Bárbara doada, em 1714, por D. Fernando Martins de Mascarenhas aos Jesuítas, tenham sido estes que para lá levaram o painel em estudo. Tanto mais que, de acordo com Louis Réau, o tema da «Aparição de Cristo à Virgem» é o assunto de uma das meditações propostas por Inácio de Loyola nos seus Exercícios Espirituais.

Mais tarde, com a expulsão dos Jesuítas, em 1760, o painel terá sido ocultado, tendo regressado a Santa Bárbara cerca de 1830 quando foi descrito por Veríssimo de Oliveira.

A concluir, podemos afirmar que, se este painel provém de Constância, aproxima ainda mais as duas grandes figuras do nosso Maneirismo que foram Luís de Camões e Fernão Gomes, dois homens que se conheceram, tendo o pintor imortalizado o poeta na sua vera-efígie." 
Dagoberto Markl
Apud: 139 - Antiguidades e Obras de Arte, 28-29.05.2012 / Cabral Moncada Leilões






Para saber +



Aparição de Cristo à Virgem: Fernão Gomes
por  Vítor Serrão
Porto : Santa Casa da Misericórdia do Porto, 2017.
 48 p. : il. ; 22 cm.










Cristo Falando aos Fiéis

Óleo sobre madeira
escola portuguesa do séc. XVI
Não assinado, 118 x 70 cm