2023/12/31

Comentário a "No Reino da Água o Rei do Vinho" de Luiza Nóbrega







 COMENTÁRIO A O CANTO MOLHADO 

por Silvina Rodrigues Lopes


No Reino da Água o Rei do Vinho: submersão dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d’ Os Lusíadas, de Luiza Nóbrega, constitui um momento decisivo da leitura daquele poema de Luís de Camões, por quatro motivos principais: 
1. parte de um conhecimento exaustivo dos estudos camonianos, deslocando o horizonte aberto pelo que há de mais importante nessa tradição; 
2. realiza um trabalho de leitura e interpretação que, tomando o poema enquanto tal, na sua intrínseca complexidade, mostra a inépcia das leituras culturalistas que apenas encontram no poema a exaltação de feitos dos portugueses servida por uma estrutura retórica; 
3. apresenta uma argumentação consistente acerca dos processos metamórficos e dionisíacos que estruturam o poema; 
4. descobre aspetos decisivos, não só dessa estruturação metafórico-metamórfica, mas também contextuais e intertextuais, que subtraem o poema a um destino de simples objeto de análise, e sobretudo ao de suporte de projeções ideológicas.

Dando continuidade às investigações de Jorge de Sena, para quem o conhecimento d’ Os Lusíadas devia ter como base o conhecimento da sua estruturação, Luiza Nóbrega chega a conclusões que correspondem à afirmação feita por este poeta no discurso da Guarda, a de que Os Lusíadas é um poema subversivo. Entendia Jorge de Sena que toda a poesia assim é, no sentido em que ela não se limita a narrar, descrever ou representar factos, mas que nela emergem verdades perturbadoras das figuras e ideologias que suportam e organizam aqueles.

Luiza Nóbrega dedicou-se, por conseguinte, ao estudo do poema como poema, recorrendo nomeadamente à teorização do literário por Júlia Kristeva, a partir dos conceitos de semiológico e semiótico e das suas implicações na configuração textual.

Iniciando o seu estudo d’Os Lusíadas a partir de 1982 – quando lê o poema pela primeira vez, num seminário de Literatura Portuguesa, durante seu mestrado em Literatura Brasileira – a etapa decisiva do seu trabalho, na qual tudo o que viria a investigar posteriormente já está ou bem delineado ou apresentado em intuições e descobertas posteriormente prosseguidas, é a sua tese de doutoramento, defendida em julho de 2001, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o título A Traça no Pano: Contradicção de Baco n’ Os Lusíadas. Como epígrafe da dissertação, um excerto da Carta de Ceuta, de Camões, onde se acha a expressão traça no pano, põe em destaque a consciência que o poeta tinha da não linearidade do ofício poético, que é, quer a possibilidade e importância da dissimulação e do uso de máscaras, quer a impossibilidade de redução ao voluntarismo.

Não é apenas de contradições que se trata, é de um movimento do poema que se não identifica com a sua discursividade, mas decorre da sobreposição e organização de estratos semânticos heterogéneos, da configuração rítmica, das tensões pelas quais o tecido do poema se faz e se desfaz, isto é, se apresenta ele próprio como processo de metamorfoses, de que o mar é agente simbólico e conceptual. Desde aquele primeiro texto, a perseverança da autora na análise da estruturação do poema, a diversos níveis e segundo diversas perspectivas, permitiu-lhe definir dois eixos principais – o da figura oceânica e o do mito dionisíaco, presentes no título do livro agora publicado – através dos quais se pode compreender a confluência de uma vasta tradição literária n’Os Lusíadas.

Para além da atenção à configuração semântica e rítmica do poema, a descoberta de uma sintaxe reversiva, na qual se constitui um navegante navegado, mostra a complexidade da enunciação do poema, para a qual concorrem ainda outros aspectos. De entre estes, tem particular importância a circunstância histórica (contexto e intertexto), que a autora mostra ser preciso ter em conta na constituição d’Os Lusíadas, nomeadamente através da identificação que faz de uma dissidência ideológica partilhada entre Camões e alguns dos seus contemporâneos (Garcia da Horta e Diogo do Couto, por exemplo). Ao dar a conhecer esta dissidência e ao apontar a partir dela um desafio de Luís de Camões à tirania da época em que viveu, Luiza Nóbrega afasta por completo a possibilidade de ele ter escrito uma simples crónica rimada e encomiástica dos descobrimentos portugueses.

É particularmente importante sublinhar como desde sua tese, defendida em 2001, Luiza Nóbrega fez da indagação da função de Baco no poema um elemento central para a compreensão do mesmo – ao abalar a função ideológica tradicionalmente atribuída àquela figura mítica, abala a própria redução do poema a um nível ideológico.

Em No Reino da Água, o Rei do Vinho: submersão dionisíaca e transfiguração trágico-lírica d’Os Lusíadas, a função de Baco-Dionisos como agente do emergir da contradicção do poema aparece, não só apoiada num amplo conhecimento do mito, como suportada pela leitura subtil e rigorosa de algumas passagens (trechos que a autora demonstra serem semanticamente críticos) d’Os Lusíadas; após o que nada será como dantes em relação a um poema que não pode mais ser encerrado na estrita categoria do épico, mas, como Luiza Nóbrega demonstra, é também trágico-lírico.

Silvina Rodrigues Lopes
Lisboa, 14 de março de 2010.

Observação:
"O texto publicado era uma versão anterior do comentário, que foi depois ampliado pela comentarista, Silvina Rodrigues Lopes, professora catedrática na Universidade Nova de Lisboa. O texto válido, que agora segue [...], foi publicado como prefácio de No Reino da Água o Rei do Vinho." - Luiza Nóbrega, na sua página do Facebook, de onde se transcreveu este texto.