2024/08/14

Resenha à biografia de Camões de Isabel Rio Novo pelo professor Vítor Serrão




O Professor e Historiador Vítor Serrão



FORTUNA, CASO, TEMPO E SORTE (ed. Contraponto, 2024) é um muito bom livro sobre a figura e o tempo histórico de Luís Vaz de Camões, ambos desenhados e fundidos nos seus aspetos plurais por Isabel Rio Novo. Tenho dificuldade em lhe chamar romance histórico, género tantas vezes aviltado (e com razão: nem todos podem ser Umberto Eco...). Estas 600 pp. de excelente escrita têm, antes, uma solidez de interpretações e relatos descritos com cumplicidade amorável e ancorados numa longa base de erudição que dá pleno suporte aos vários capítulos.

O 'romance' de IRN é um grande fresco em que se nos revelam em cores plausíveis os muitos Camões, o estudante, o palaciano, o boémio, o amante, o soldado, o preso, o exilado, o lírico, o épico, o antiépico, o náufrago, o epistológrafo, o dramaturgo, o doente, o anoso desencantado..., os quais se vão sucedendo, entre a realidade crua dos textos coevos, para explicar a rápida gigantização do poeta, que se seguiu ao reconhecimento internacional de Os Lusíadas.

Temia-se mais uma deriva fantasista a juntar a um sem-número de textos condenados a ser espuma volátil, fazendo lembrar as palavras certas de Almada-poeta (n’A Cena do Ódio, 1923): «…E inda há quem faça propaganda d’isto: a patria onde Camões morreu de fome e onde todos enchem a barriga de Camões!». Afinal, IRN supera com maestria essas tentações fáceis pelas mitificações abusivas. Mesmo a História contra-factual, a que a sua vocação literária tem direitos, é usada com parcimónia e justeza: até a hipótese de identificação da criada Bárbara, companheira dos últimos dias do poeta na casa da calçada de Sant'Ana, com a bela escrava das endechas, parece ter solidez... tanto quanto a lenda do Jau de Pedro de Mariz, pelo menos, e outros testemunhos credíveis que contam a angústia final do poeta doente, a quem a tardia fama já não valeu na má sorte...

Este livro, que será menos um romance e mais um ensaio romanceado de História, ensina-nos a ver Camões e a sua obra através dos «muitos outros Camões», coisa que desde Jorge de Sena se tornava necessária, desfeito o mito romântico-renascentista que prendia o vate a uma cómoda camisa de sete varas e a cânones académicos predeterminados. E logo ele, rebelde, inconstante, crítico, malcriado, brigão, marginal, como o eram os melhores maneiristas nessa Europa quinhentista em crise!

Meia-dúzia de 'senãos' apontados: Jerónimo Corte-Real, poeta que aparece na sua verdadeira dimensão de grandeza (como Hélio Alves de há muito provou), nunca esteve em Alcácer Quibir; esperava-se um capítulo, uma etapa de vida breve que fosse, pontuada pelo ambiente de Punhete e do Zêzere; e está ausente, inexplicavelmente, a 'corte na aldeia' de Vaqueiros (Santarém), o solar de letrados de D. Gastão e D. Gonçalo Coutinho, onde Camões foi acolhido e onde a sua poesia era lida nas margens do Alviela. Coisas de somenos, dirão (e direi eu), que não deslustram a excelência de um livro de seiscentas páginas como este.

Um livro que não esconde glórias e podres, sucessos e misérias, e que se lê como se estivéssemos a admirar lentamente um 'tempo histórico congelado' através de um políptico ou uma grandiosa pintura a fresco em que Luís Vaz é o centro! A ler, evidentemente.

Vítor Serrão
in Facebook, 13,08.2024












Redação: 14.08.2024