2024/09/04

A biografia camoniana de Isabel Rio Novo resenhada por João Reis Ribeiro

 

O Camões que Isabel Rio Novo nos revela

pelo professor
João Reis Ribeiro

1

"Em Junho de 1552, Camões envolveu-se num litígio com o estribeiro Gonçalo Borges, na zona lisboeta do Rossio, ferindo-o “junto do cabelo do toutiço”. Dois meses depois, o poeta estava na cadeia, no Tronco. Por Fevereiro de 1553, o ofendido perdoou a agressão por não ter ficado com maleita decorrente do ato, tendo chegado a acordo com Camões, devendo este suportar as despesas judiciais. Para que esta ação tivesse valor, o processo de perdão tinha de ser submetido a dois juízes — um deles foi o setubalense D. Gonçalo Pinheiro (1499-1567), na altura bispo de Viseu —, que deram parecer favorável.

Como teria sido a vida do mais conhecido poeta português nessa prisão designada como “Tronco”? Do que ali passou não ficou registo pormenorizado, mas há um soneto em que a mágoa camoniana do que ali sofreu pode transparecer — “Em prisões baixas fui um tempo atado, / Vergonhoso castigo de meus erros; / Inda agora arrojando levo os ferros, / Que a Morte, a meu pesar, tem já quebrado.” Na verdade, o soneto poderá referir-se a prisões outras de que a vida se encarregou, mas não deixa de poder estar ligado, pela ideia de sofrimento, ao tempo passado no “Tronco”…

Este apontamento serve para se chegar ao relato que compõe a obra Fortuna, Caso, Tempo e Sorte: biografia de Luís Vaz de Camões, de Isabel Rio Novo (Contraponto, 2024), digna homenagem ao autor de Os Lusíadas. Neste momento da vida do poeta, o leitor consegue perceber a amargura e a dor vividas na cela pelo recurso que a autora faz a testemunhos da época, num tom em que se é quase convidado a participar numa visita ao castigado — “Imaginemos, pois, Camões numa cela do Tronco, os pés agrilhoados, no meio da escuridão mal dissipada pela luz tremeluzente da candeia espetada numa junta da parede. […] A cadeia era penosa para o corpo, mas ainda mais violenta para o espírito. […) Quando as visitas saíam e, com elas, saíam os raios de alegria ou distração, ficavam só as trevas, as paredes húmidas da cela, as noites que nunca mais acabavam, os dias arrastados e sempre iguais.”

As dificuldades em torno do percurso de vida de Camões iniciam-se com o seu nascimento, nas dúvidas quanto a data e local, ainda que, no século XVII, Faria e Sousa, seu biógrafo e comentador, tenha registado a descoberta de um assento de viagem para a Índia datado de 1550, em que consta, como possível passageiro, “Luís de Camões, filho de Simão Vaz e de Ana de Sá, moradores em Lisboa, na Mouraria, escudeiro, de vinte e cinco anos, barbirruivo”. Camões terá, pois, nascido em 1524 ou em 1525, datas nem sempre aceites, pois os documentos originais desapareceram.

Isabel Rio Novo segue esta hipótese quanto ao ano de nascimento, ainda que desvalorizando uma opção forçada por um ano ou por outro. Quanto ao local de nascimento, a biógrafa passa pelas várias possibilidades que a história tem encontrado em função dos gostos dos estudiosos, chegando a concordar com Aquilino Ribeiro, quando disse: “Basta saber-se que nasceu em Portugal, o mais é competição de campanário.” Perante as incertezas, regista o nascimento, no tom de reconstituição que logo prende a atenção do leitor: “No Porto, perto do Porto, ou quando muito em Coimbra, mas muito dificilmente em Lisboa, num qualquer dia do ano de 1524 ou 1525, Ana de Sá e Macedo deu à luz um menino, sendo assistida por outras mulheres experientes, parentes ou vizinhas. Certamente que o parto ocorreu em casa de familiares. Na época, só uma mulher solteira, sem família ou desprovida de quaisquer recursos teria o filho no hospital.” Assim vinha ao mundo o trineto, pelo lado paterno, de Vasco Pires de Camões (galego, de Camos) e de Maria Tenreiro (portuguesa), bisneto de João Vaz de Camões e de Inês Gomes da Silva, neto de Antão Vaz e de Guiomar da Gama e filho da já referida Ana de Sá e de Simão Vaz de Camões.

Até ao final, o livro vai fazer justiça ao título escolhido, retirado da primeira quadra de um soneto — “Verdade, Amor, Razão, Merecimento / Qualquer alma farão segura e forte, / Porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte / Têm do confuso mundo o regimento.” E é quase no final do derradeiro capítulo que a autora justifica a escolha: as quatro forças escolhidas, em nada dependentes da vontade humana, regiam o “confuso mundo” e a vida. E o curso dos dias de Camões — pelos valores, pelas ocasiões, pelas brigas, pelo saber, pela instabilidade, pelos devaneios, pelos (des)amores, pela memória, pelos contextos, pelos exílios, pela dor, pelo dever consagrado à pena e à espada — fez parte desse horizonte, em tudo contrário à segurança anunciada pelo primeiro verso…

João Reis Ribeiro500 Palavras: O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (1)
in O Setubalense [online], 28.08.2024.

2

"A estratégia seguida por Isabel Rio Novo ao longo das cerca de 600 páginas de Fortuna, Caso, Tempo e Sorte: biografia de Luís Vaz de Camões mistura o que é possível obter dos poucos documentos que existem sobre a pessoa do biografado, as opiniões que têm sido emitidas pelos variados biógrafos que tomaram o poeta como estudo (concordando com uns, discordando de outros, seguindo alguns), a obra literária conhecida no que possa ter de confessional ou de autobiográfico (não sem que haja a recusa, várias vezes referida, de seguir uma interpretação literal de tais textos) e a técnica literária da construção de romance (que a autora domina), destinando-se esta a preencher os espaços e os tempos de que não há informação precisa na vida de Camões, fundamentada em elementos de estudos sobre a época que garantem a sustentação das hipóteses interpretativas — é assim que se valoriza o efeito sugestivo trazido por termos como “imaginemos” (proposta ao leitor em diversas ocasiões), por formulações de convite a uma descoberta comum ao leitor e a quem narra (“Sigamos Camões até junto da Ribeira de Goa”, para, depois, nos ser apresentado aquele espaço nos domínios da arquitetura, da estrutura social, do quotidiano) ou, já na fase em que se prepara a publicação de Os Lusíadas, a apresentação de uma possibilidade, a propósito do encontro entre o autor e o inquisidor, quando “o mais plausível é mesmo pedir ao leitor que imagine Camões, que vivia na encosta de Santana, a apoiar-se nas muletas, a propender para a Baixa e a dirigir-se lentamente ao convento dos dominicanos, a ordem a que geralmente pertenciam os inquisidores.”

Com estes pedidos de colaboração, está-se a envolver o leitor na construção da trama, sobretudo naqueles segmentos que não estão absolutamente documentados, mas que são indispensáveis para que a vida tenha acontecido. Aliás, Isabel Rio Novo dá conta, em várias ocasiões, da dificuldade de reconstituição, como acontece no início do capítulo que aborda a vida do biografado na Índia — “O ano de 1555 é aquele a partir do qual a cronologia de acontecimentos na vida de Luís de Camões impõe mais desafios a um biógrafo.” E, uns parágrafos adiante: “formar e juntar as peças que permitem reconstituir o itinerário do serviço militar, das viagens e das etapas de Camões no Oriente ao longo deste e dos próximos capítulos foi um verdadeiro desafio.”

Uma das formas interessantes como Isabel Rio Novo se embrenha neste “desafio” é, por exemplo, o momento em que tem de relatar a vida de Camões na prisão em Goa (onde foi parar por decisão do governador Francisco Barreto, na sequência de uns textos satíricos), recorrendo à iluminura que representa o poeta na prisão goesa, descoberta em 1972 — o leitor percorre duas páginas e meia de descrição da iluminura, processo que serve para que a sua personagem central, Camões, nos seja apresentada em pleno labor de Os Lusíadas. O desenho não é reproduzido nas páginas do livro, mas é amplamente dissecado naquilo que pode ser a informação útil para se imaginar a forma como o poeta viveu este tempo de enclausuramento e a maneira como construiu o seu mundo entre as quatro paredes da cela… Por outro lado, este desenho é valorizado como documento autêntico, muito provavelmente pintado por amigo que tenha sido visita assídua daquele espaço — uma obra que teve também as suas mutilações, pois, na legenda gravada no verso, consta a informação “Luís de Camões preso, e tendo a seus pés quem quis perdê-lo na Índia”; ora, “na zona inferior do retrato, sob os pés do preso, a olho nu apenas se vê uma mancha de tinta negra, aparentemente aplicada para ocultar a identidade de quem lá estivesse representado”, possibilidade que ganha crédito se pensarmos que está provado ter essa camada de tinta sido aplicada num tempo posterior à elaboração do quadro…

João Reis Ribeiro500 Palavras: O Camões que Isabel Rio Novo nos revela (2)
in O Setubalense [online], 4.09.2024.





para saber +


Ler a crónica "500 Palavras" de João Reis Ribeiro
em O Setubalense [online].










Redação: 4.09.2024