Camões na Escola: celebrações e desafios
Texto do
Professor Doutor José Augusto Cardoso Bernardes
É provável que as celebrações dos 500 anos do nascimento do nosso poeta maior venham a centrar-se no Camões desconhecido. Há os enigmas que vêm do passado e que, em boa parte, continuam por resolver. E o nosso tempo tem também questões novas para colocar a quem investiga neste domínio. A avaliar pelo que sucedeu em ocasiões análogas, as reuniões científicas (colóquios e congressos) devem procurar alcançar dois objetivos: descobrir matéria nova e ajustar a imagem do poeta à realidade atual.
Para além do âmbito estritamente académico, há́, contudo, outras vertentes que não podem ser esquecidas. Uma delas diz respeito à presença de Camões na Escola.
Há que admitir, em primeiro lugar, que não se trata de um assunto menor. Se o poeta ocupa lugar central na vida cívica portuguesa é porque a sua obra é dada a ler aos adolescentes desde há́ muitas décadas. Ao contrário do que sucede com a generalidade dos autores, o autor d’ Os Lusíadas e da Lírica está na Escola desde que ela existe como instituição pública. Houve momentos em que essa presença foi menos intensa. Houve até períodos em que ela surgiu desfigurada. Recordo, em especial, o programa do Ensino Secundário que antecedeu aquele que se encontra em vigor. Nesse programa, de memória menos boa, a Lírica camoniana servia de suporte ao estudo descritivo da autobiografia, tomada como simples modelo de discurso.
A presença de Camões na escola portuguesa não é matéria que se analise de forma superficial ou acessória. Se quisermos consolidar o que está bem e mudar alguma coisa, temos de prestar atenção à forma como, noutros países, se lida com o ensino da literatura, em geral, e com o ensino dos clássicos, em particular. Temos de começar por aprender com o que se fez no passado e com o que se faz hoje. Em suma: é necessário pesquisa, ponderação científico-pedagógica e espírito de inovação.
Atualmente, Camões é dado a conhecer consecutivamente a alunos do 9.º (épica) e do 10.º ano de escolaridade (épica e lírica). Nem a recente redução que transformou as “metas curriculares” em “conteúdos” afetou significativamente o peso específico do poeta no ensino básico e secundário. Recordemos que é comum dedicar a Camões, pelo menos, 20 aulas no 9.º ano, e 10 no 10.º ano.
Há boas razões para que assim seja. Pela sua qualidade e pela sua densidade estética e existencial, os textos camonianos servem os principais objetivos do ensino da literatura, envolvendo sensibilidade, espírito crítico, conhecimentos de língua e de cultura, em sentido amplo. Mas há outros benefícios importantes. A presença continuada de Camões na Escola cria uma espécie de saber intergeracional que se reflete na esfera cívica.
Assim se explica, nomeadamente, que personagens e temas como Inês de Castro, o Velho do Restelo, o Adamastor ou a ilha dos amores tenham adquirido significados reconhecíveis por todos: a “linda Inês” representa o conflito entre os direitos individuais e as conveniências do Estado; a figura de “aspeito venerando” que clama na praia, “por entre as gentes”, evoca temores retrógrados; o terrível Adamastor equivale aos obstáculos que exigem coragem e capacidade de superação; a ilha dos amores, por fim, remete para utopias de plenitude, baseadas no Amor sem culpa e no Conhecimento sem reservas.
MAS QUANDO FALAMOS da presença de Camões na escola portuguesa, não vale a pena fingir que tudo está bem. Sabemos, por exemplo, que a forma como o poeta é ensinado deixa, por vezes, um rasto negativo nos alunos. É necessário pensar nos motivos que explicam esse rasto de desagrado. É útil avaliar se é de natureza ocasional ou sistemática. É certo que conhecemos muitos testemunhos, mas não se sabe até que ponto eles são representativos. Do mesmo modo, não sabemos o que dita a negatividade desses testemunhos: os textos escolhidos serão os mais apropriados? o dito rasto fica-se pela épica ou estende-se à Lírica, do mesmo modo? os objetivos fixados para o estudo de Camões são adequados aos alunos de hoje? a forma como as matérias camonianas são tratadas na aula é atrativa? o grau de entusiasmo e de conhecimento com que os professores falam do poeta é adequada e suficiente?
Se quisermos encarar a discussão destes assuntos com seriedade e coragem, temos de ir ainda mais longe. Refiro apenas três aspetos:
1. Sabemos bem que, por motivos de vária ordem, muitos jovens (e também os que deixaram de ser jovens) resistem a tudo o que requer trabalho perseverante. Importa verificar, portanto, se o convívio prolongado com textos de difícil compreensão não será contraproducente. Desde logo, porque qualquer soneto ou qualquer estância de Camões reclama tempo e implica explicações (vocabulares, histórico-contextuais, etc.).
2. Para mais, pela sua natureza, a poesia camoniana impõe um transporte de sensibilidade e de cultura para épocas que se afiguram já muito longínquas. Esse processo de alteridade, que envolve valores, pode originar vivências pedagógicas de sucesso; mas pode conduzir também a experiências frustrantes e erosivas. Ora, parece útil equacionar os fundamentos e as causas de umas e de outras. Justifica-se, sobretudo, identificar e promover a difusão das experiências mais eficazes.
3. Há 50 anos, Os Lusíadas (e também a Lírica, embora em menor escala) eram ensinados a turmas homogéneas. E essa circunstância atenuava as dificuldades sentidas na motivação, na transmissão dos conteúdos e na adesão dos públicos escolares.
HÁ MUITO QUE ESSE CENÁRIO de tranquilidade se extinguiu. Quem hoje ensina Camões a adolescentes de 14 e 15 anos enfrenta desafios bem difíceis. Começo por lembrar as dificuldades de quem tem de o fazer numa das escolas portuguesas espalhadas pelo mundo (Díli, Praia, Maputo, Luanda).
Mesmo em Portugal, o quadro é já de grande exigência. Para além de serem muito heterogéneas do ponto de vista socioeconómico, as turmas são, muitas vezes, constituídas por alunos de várias nacionalidades, o que implica predisposições culturais muito variadas e níveis de proficiência muito diferentes, tanto na língua como na cultura. Esta situação condiciona a relação pedagógica no seu todo; mas condiciona ainda mais o tratamento de matérias humanísticas, aquelas que mais se prestam à convocação de crenças e ideais de vida.
Surgem assim perguntas inevitáveis: estarão os professores preparados e motivados para enfrentar todos estes desafios? Em concreto: recebem suficiente formação camonística nas Universidades e nas Escolas Superiores de Educação? Dispõem de oportunidade e de estímulo para renovar o entusiasmo e o conhecimento sobre Camões ao longo do seu percurso profissional?
A avaliar pelo que consta das plataformas de instituições responsáveis pela formação inicial, conclui-se que subsistem lacunas incompreensíveis. Continua a ser possível, nomeadamente, que um professor de Português inicie funções sem nunca ter estudado a obra de Camões. O mesmo sucede na “formação contínua”, uma vez que os centros formativos só muito raramente oferecem cursos orientados nesse sentido.
Ora, como bem sabemos, a pedra de toque do sucesso educativo reside na qualificação e na motivação dos professores. Tanto mais que, falar sobre Camões em sala de aula de forma neutra ou apagada equivale a manter os alunos afastados, indiferentes ou enfastiados.
Por ocasião dos 500 anos do nascimento do autor d’ Os Lusíadas espera-se, pois, que a questão da sua presença em ambiente escolar seja objeto de atenção mobilizadora e programada. Há muitos temas para investigar, debater e decidir neste domínio concreto. Acima de tudo, seria importante que a oportunidade fosse aproveitada para falar de aspetos que são muitas vezes dados por adquiridos. É necessário proceder a uma análise da situação atual, ressalvando o que nela possa existir de bom e proveitoso. Mas é importante ter em conta as transformações que se têm vindo a verificar no perfil dos adolescentes que hoje se sentam nas nossas salas de aula. Só assim conseguiremos assegurar o objetivo mais importante, do ponto de vista cívico e educativo: que os textos de Camões possam constituir uma oportunidade de encontro benéfico, capaz de deixar memórias positivas nos alunos e de os fazer crescer enquanto seres humanos, nos planos da sensibilidade e da cultura.
Fontes do texto do artigo:
para saber +
BERNARDES, José Augusto Cardoso – Edições escolares: as que existem e as que faltam, in JL – Jornal de Letras, n.º 1339 – Tema: Os Lusíadas, 450 anos (jan.-fev. 2022), p. 2-3.
MARNOTO, Rita – A leitura de Os Lusíadas: anacronismo e atualização, in JL – Jornal de Letras, n.º 1339 – Tema: Os Lusíadas, 450 anos (jan.-fev. 2022), p. 1-3.
PINHEIRO, Daniela – Haverá lugar para Os Lusíadas na sala de aula do século XXI?, in JL – Jornal de Letras, n.º 1339 – Tema: Os Lusíadas, 450 anos (jan.-fev. 2022), p. 3-4.
Redação: 6.09.2024