Um poema de D. Gonçalo Coutinho, Senhor de Vaqueiros e mecenas da memória de Camões
Uma cripto-história de Santarém
pelo historiador Vítor Serrão
"Desde sempre a figura de D. Gonçalo Coutinho (1564-1642), poeta, homem de letras e senhor de Vaqueiros, foi referência presente, com maior ou menor visibilidade, nos estudos camonianos. Bastava para isso o facto, amplamente reconhecido, de que foi ele o primeiro mecenas de Luís Vaz de Camões a preservar a sua memória. De facto, não só fez publicar em 1595 (e de novo em 1598) o manuscrito das Rimas, que o vate lhe deixou entre as suas últimas vontades, como mandou pintar o retrato póstumo do poeta e, ainda, mandou colocar uma lápide-memória junto à sepultura de Camões à entrada da igreja de Sant'Ana em Lisboa.
Tudo isso é, em linhas gerais, matéria divulgada pelos estudiosos que se ocuparam de Camões. Já menos conhecido é o papel que assume na saga camoniana a figura de seu pai D. Gastão Coutinho (falecido em 1579, que jaz na capela-mor da igreja de Vaqueiros sob campa brasonada). Ele, sim, foi um dos primeiros protectores do vate, ainda D. Gonçalo era criança. Durante o célebre (mas ainda misterioso) «desterro no Ribatejo» em 1547 e 1548 (meses que Luís de Camões passou de castigo por causa de amores contrariados, possivelmente com D. Catarina de Ataíde, aia da Rainha), o poeta esteve em Santarém, Pernes, Vale de Figueira e Punhete (Constância).
Certo e atestado é que Camões voltou de novo à aldeia do Alviela, ao regressar da Índia, durante os anos de 1570-1580, quando o comendador de Vaqueiros e Casével o recebe no seu solar sito na aldeia junto ao rio Alviela. É significativo que o jovem D. Gonçalo (cujo nascimento se pode agora estabelecer com certeza em 1564) conhecesse o seu admirado Camões por via paterna e assim tivesse tomado posse, não só do manuscrito original de Os Lusíadas, mas também do manuscrito das Rimas, que o idoso vate lhe dedicou e cuja publicação ele se encarregou de fazer cumprir em Lisboa, em 1595, com impressão de Manuel de Lira…
Nova documentação revelada no recente livro Camões: Altos Cumes, Scabelicastro e Correlatos’(Edições Cosmos), da autoria de Mário Rui Silvestre e do autor desta crónica, permite definir melhor esse quadro em que o poeta (cujas raízes santarenas passaram, entretanto, a ser melhor conhecidas) se deixou enamorar pelas lindas paisagens do Alviela e dos campos de vistas desafogadas que conduzem a Vale Figueira, ao Pombalinho e à foz do Zêzere em Punhete. Nesses anos que antecederam a partida para a Índia, em 1553, Camões conviveu com D. Gastão, pois o «desterro em Santarém» não se limitou a Constância. Muita da poesia bucólica do vate, incluindo aquela que destaca a beleza das Tágides, se situa neste cenário ribatejano. Algumas das cartas de D. Gonçalo Coutinho, ainda inéditas, vêm agora esclarecer-nos melhor sobre tais relações fraternas e envolvências literárias.
Só com quinze ou dezasseis anos, portanto, o jovem D. Gonçalo conheceu o vate, fosse na casa dos Coutinho em Lisboa, fosse em Vaqueiros, e de tal modo se afeiçoou ao seu carisma de poeta, que o próprio Camões, precocemente velho e já muito doente, lhe dedicou o manuscrito das Rimas, confiando que o jovem Gonçalo Coutinho o viesse a publicar, como fez, quinze anos após a sua morte.
Resta estudar, pois, a esquecida figura de D. Gastão, e apreciar melhor o espírito camoniano que ainda subsiste nesta esquecida aldeia santarena situada na margem esquerda do Alviela e onde ainda se encontram vestígios do velho solar dos Coutinho (com a lápide brasonada, datada de 1619, que Mário Rui Silvestre aí descobriu há cerca de trinta anos) com envolvências das memórias literárias de uma esquecida 'corte na aldeia' onde não só Camões, mas também os poetas D. Manuel de Portugal, Diogo Bernardes e Frei Agostinho da Cruz, seus amigos e admiradores, passaram estâncias. O recente livro, acima citado, levanta pontas deste véu - mas muito existe ainda por descobrir na saga do "glorioso desventurado" Luís Vaz de Camões, o Poeta de Portugal…
A obra sobrevivente de Gonçalo Coutinho (elogiada por Luís Franco Correia, Faria e Sousa, D. Francisco Manuel de Melo e outros autores coevos) resume-se à 3ª parte da Crónica de Dom Duardos, romance picaresco bem estudado pela Doutora Nanci Romero (Universidade de São Paulo), a uma elogiosa biografia de Francisco de Sá de Miranda, e ao livro de memórias políticas Discurso da Jornada de Dom Gonçalo Coutinho à villa de Mazagam e seu governo nella (editado em Lisboa, 1629). Já o livro de poemas que no início do século XVII estava a compor na quietude da sua casa de Vaqueiros, e se chamava Lagrimas do Alviela, se perdeu. Teófilo Braga, em 1874, alude a uma cópia desse manuscrito, pertencente à biblioteca do Duque de Lafões, mas já então inlocalizável. Numa carta de Vaqueiros datada de 15 de setembro de 1606 (citada no recente livro sobre Camões que escrevi com Mário Rui Silvestre), Gonçalo Coutinho dirige-se ao grande historiador e cronista castelhano Dr. Luís Tribaldos de Toledo, bibliotecário do Conde-Duque de Olivares, cronista-mor de Índias e membro do Conselho de Estado de Filipe III, e diz-lhe, entre outras coisas, que andava a escrever um livro com esse título e que lhe ia enviar uma transcrição traduzida de parte dos poemas.
Perdido o manuscrito do livro, só algumas dessas poesias chegaram aos nossos dias, por fazerem parte de compilações e colectâneas poéticas. Uma dessas miscelâneas está na Biblioteca Nacional de Espanha (BNM, Mss 3992 e BNM, Mss. 4152) e inclui um poema dedicada à senhora de Santar D. Elvira Coutinho, identificado como de Gonçalo Coutinho. Todavia, pese a influência camoniana que revela, padece de um excessivo «gongorismo» que, tal como referiu Nanci Romero, não valoriza as rimas e empobrece as metáforas.
Já outro poema mais feliz, com dedicatória ‘en la muerte de una dama portuguesa en Santarén’, pode ser considerado um belíssimo soneto de amor do poeta de Vaqueiros. A sua qualidade, aliás, levou a que, por lapso, tenha andado mal atribuído ao próprio Luís de Gôngora (1561-1627), chegando mesmo a integrar as compilações póstumas das obras de Gôngora organizadas por D. António Chacón Ponce de León (1628), por Don Gonzalo de Hozes y Cordova (1632) e por Garcia de Salzedo (1644). A primeira compilação citada ficou manuscrita. Na de Hozes, o responsável regista as observações do Dr. Tribaldos de Toledo (amigo de Gôngora, e correspondente de Gonçalo Coutinho) o qual adverte para o facto de alguns dos manuscritos coligidos terem poesias que não eram de Gôngora! Na compilação de Garcia de Salzedo, este afirma que o soneto em causa (recebido do Dr. Siruela, cónego do Monte Santo em Granada) levantava dúvidas de autoria. Mas a verdade é que o soneto passou como sendo do próprio Gôngora, esquecendo-se o nome do poeta português… e o compilador ajudou ao engano, ao confessar que, por achar que a referência ao 'Albiela' era erro de copista, por ser um rio inexistente (!), a mudou na transcrição para 'rio Vizela'(no arcebispado de Braga), assim mais complicando as coisas…
Trata-se do soneto 'Aljófares risueños de Albïela', que tem passado como obra do grande Gôngora e é, afinal, do poeta de Vaqueiros! Um poema de amor belíssimo, que começa com a exaltação das pérolas ridentes do rio santareno… No livro Gongora: An Historical and Critical Essay on the Times of Philip III and IV of Spain, de Edward Churton (Londres, 1862), refere-se que o Dr. Tribaldos, ao aprovar em 1632 a publicação de que Hozos fora responsável, advertiu o editor que nos manuscritos coligidos por Hozes havia poesias que não eram de Gôngora. E mais diz Churton: «É claro que Tribaldos estava ciente de quão acriticamente Hozes havia executado sua tarefa e, tendo o manuscrito de Chacon sob os seus próprios cuidados, quis alertar o leitor a não tomar como certa toda a informação nele contida».
O soneto de D. Gonçalo Coutinho ‘Aljofares risueños de Visela’ reza assim:
‘En la muerte de una dama portuguesa en Santarén.
Aljófares risueños de Albïela:
al blanco alterno pie fue, vuestra risa,
en cuantos ya tejió coros Belisa,
undosa de cristal, dulce vihuela;
instrumento hoy de lágrimas, no os duela
su epiciclo, de donde nos avisa
que rayos ciñe, que zafiros pisa,
que, sin moverse, en plumas de oro vuela;
pastor os duela amante que, si triste
la perdió su deseo en vuestra arena,
su memoria en cualquier región la asiste,
lagrimoso informante de su pena
en las cortezas que el aliso viste,
en los suspiros cultos de su avena’.
Resta indagar quem seria a misteriosa dama de Santarém que inspirou o poeta de Vaqueiros nesta artística evocação fúnebre da sua memória, cheia de referências musicais.
O facto de este soneto do perdido livro Lágrimas do Alviela constar das primeiras compilações póstumas das obras de Gôngora leva a crer que o manuscrito de Gonçalo Coutinho estivesse em Espanha, tanto mais que o referido responsável da ed. de Madrid de 1644 fala de certos manuscritos que compulsou nas bibliotecas de Joseph Pellizer e de Luís Mendes de Haro para organizar a compendiação. E sabemos, de fonte segura, que o poeta camonista, que viveu estâncias várias em Madrid, mandou poemas do seu perdido livro ao Dr. Tribaldos de Toledo. Ou seja, pode ser que as misteriosas Lagrimas do Alviela ainda possam ser encontradas em algum fundo espanhol; acalentemos essa esperança !
Nota: agradeço ao amigo Doutor Jaelson Bitran Trindade (IPHAN, S. Paulo) por me pôr nesta pista e, também, a Mário Rui Silvestre, Hélio J. S. Alves, Francisco Bilou, Firmino Oliveira e António Carlos Cortez pelas discussões e achegas frutuosas a este propósito.
Vítor Serrão
in Correio do Ribatejo, 15.11.2024
Reproduzido em Vitor Serrão | Facebook, 14.11.2024