Lei que decretou feriado nacional o dia 5 de fevereiro de 1924,
publicada no Diário do Governo, 2.02.1924. | [PDF]
EM QUE DIA NASCEU CAMÕES?
O Dr. Teófilo Braga diz ao "Século" a data do nascimento do grande épico e o significado social da comemoração que por iniciativa do município se vai realizar.
"A comemoração do quarto centenário do nascimento de Camões que o Século foi o primeiro a alvitrar e que se vai realizar por iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa, é acontecimento de assinalada importância, um acontecimento de tão excecional grandeza, que nem só deve interessar à cidade de Lisboa, que foi berço do imortal épico, mas ao país inteiro, sendo para desejar que esse movimento nacional ao redor de tão glorioso facto correspondesse, internamente ao levantamento dos espíritos, à reação indispensável contra vilíssimos derrotismos e fosse ao mesmo tempo, para todo o mundo culto, como que o afirmativo brado da nossa vitalidade eterna, clarão onde se retemperassem glórias que podem quedar-se adormecidas mas que são imorredouras.
Falar de Camões em qualquer país civilizado é a mais bela forma de falar de Portugal - porque o imortal cantor dos "Lusíadas", pelo monumento literário que nos legou e pelo que este representa na causa da da civilização, é um dos mais seguros expoentes do espírito latino e o que mais alto ergue o nome português.
Como compreender, pois, a quase indiferença, o alheamento que ainda se nota distanciados apenas um mês do quarto centenário do nascimento de um tão belo espírito?!
Como interpretar o silêncio, especialmente daqueles organismos de feição intelectual que deveriam ser a guarda avançada d'estes movimentos - jamais numa época em que o estrangeiro aproveita todos os pretextos para, à sombra das suas glórias pretéritas ou presentes, retemperar e reavivar o sentimento nacional?!
O apelo do "Século" a todos os portugueses
Todas estas razões de sobra nos pareceram para, do alto das colunas do Século, soltarmos o alerta aos governantes, às instituições científicas e literárias, à generosa mocidade das escolas, para todo o povo de uma maneira geral, porque a cruzada tendente a reacender o culto por Camões é das que devem calar profundamente em peitos portugueses quaisquer que sejam as suas crenças ou ideais.
E para isso o Século quiz ouvir a mais alta figura mental portuguesa, nome de reputação mundial e de uma, especialíssima autoridade em assuntos camonianos: o eminente professor Sr. Dr. Teófilo Braga.
Ninguém melhor do que o venerando cidadão, figura política e mental de primeiro plano, para nos dizer do significado social da festa do centenário - acrescendo às nossas razões mais esta: é que o sábio professor, graças às suas investigações, parece ter encontrado a data certa do nascimento de Luís de Camões, facto importante até aqui imerso em dúvidas e confusões.
A moradia modesta do Sr. Dr. Teófilo Braga, na travessa de Santa Gertrudes à Estrela, não se transpõe com facilidade, porque à velhice, d'uma espartana austeridade, que ali procurou guarida, não sobra tempo para entrevistas de fácil acesso e notoriedade vulgar e porque o sábio ilustre, cuja privilegiada lucidez resiste ao peso dos seus oitenta anos, aproveita, metodicamente, os últimos anos da sua vida para trabalhar ainda, fazendo livros, divulgando ideias com um pensamento moral e tal intransigência de princípios que é um exemplo comovente.
O Sr. Dr. Teófilo Braga vive só, sem família, sem criados; é ele quem, em pessoa, nos vem abrir a porta. E ao tocarmos as suas mãos trémulas, ao olharmos os seus cabelos brancos, ao fitarmos aqueles olhos de um azul desboto esvaído, onde já paira a melancólica sombra da cegueira, somos sacudidos por um frémito de comoção que se intensifica à medida que penetramos naquela casa fria, desconsolada, onde ele vive voluntariamente isolado da humanidade, dessa mesma humanidade a quem ele dedica os últimos momentos da sua vida.
Como Teófilo Braga chegou a uma conclusão
Enquanto o grande mestre completa o jantar que interrompera - uma refeição de criança, de uma exagerada frugalidade - ficamos alguns minutos, mergulhados em silêncio, olhando-o com assombro. Estão ali na nossa frente 65 anos de vida literária, vividos entre canceiras, entre trabalhos, sempre com uma austera intransigência de princípios democráticos que jamais abandonou, quer fosse servindo nos modestos postos de propagandista, vereador ou deputado, ou nos, mais altos cargos da cátedra ou da suprema magistratura da Nação, onde o levaram unicamente as suas virtudes cívicas, os privilégios da sua mentalidade.
Numa época de utilitarismos, faz bem olhar este homem tão diferente dos outros que por aí passeiam inchados de egoísmo e de vaidade... Ao falarmos-lhe de Camões e do fim da nossa visita, o rosto iluminou-se-lhe num sorriso de satisfação; sob o seu bigode branco irromperam, prontamente, palavras d'uma singela lucidez e duma tal clareza que dissipavam as trevas da cegueira, mais nos convencendo de que por detrás daqueles olhos cegos há um craneo prodigioso, onde um espírito eterno crepita como inextinguível vulcão.
— Acerca do nascimento de Camões, tome nota — diz-nos — que o grande épico nasceu nesta cidade de Lisboa entre os dias 4 e 5 de fevereiro de 1524, conclusão a que cheguei, correlacionando a data de prognósticos de astrólogos dessa época, com alusões feitas por Camões, na sua obra, a propósito do seu nascimento.
"Já sabíamos — continua o ilustre professor — pelos assentos da Casa da Índia, feitos numa ocasião em que Luís de Camões esteve para embarcar, que nesta data, em 1550, ele tinha 25 anos, o que fazia supor que nascera em 1525; porém, como o ano eclesiástico começava em abril, havia que averiguar se Camões nasceu depois ou antes deste mês, para assim se determinar se nascera no ano civil de 1525 ou no de 1524.
"Ora numa das canções do autor dos "Lusíadas" encontramos o verso seguinte: "Quando vim da materna sepultura logo estrelas infelizes me falaram". Manifestamente se percebe neste verso — prossegue o Dr. Teófilo Braga — uma alusão que o poeta fazia ao facto de ter nascido sobre os signos de "Pisces" e "Aquarium", «estrelas infelizes», às quais ligava as contrariedades e desventuras que envolveram a sua atribulada vida.
"Esses signos, a que se referem o astrólogo de Carlos V, Crislobal d'Arcos, e o Dr. António de Beja, que por pedido da rainha D. Leonor viúva de D. João II, escreveu um opúsculo contra os juízos dos astrólogos que traziam a população assustada, prognosticando que da junção de «Pisces» e «Aquarium» resultariam um dilúvio e outros cataclismos - esses signos apareceram e fizeram a sua junção, embora sem os prognósticos se cumprirem, entre 4 e 5 do mês de fevereiro de 1524, conforme documentos respetivos. E deste modo, como é com estes signos que Camões declara ter coincidido o seu nascimento, temos a data identificada e podemos concluir que Luís de Camões nasceu em Lisboa entre 4 e 5 de fevereiro de 1524. Quanto à própria naturalidade de Lisboa, numa época em que não existiam registos batismais, pode tomar-se como atestado oficial o testemunho do padre Manuel Correia, pároco da Mouraria, comentador do Poema e íntimo de Camões, o qual afirmou ter sido Lisboa o berço natal desse que foi a maior glória da raça.
Camões e o sentimento nacional
Pedimos ao, Dr. Teófilo Braga algumas palavras sobre significado social do quarto centenário de Camões, prestes passar. Com a mesma lucidez, sem omissão de uma data ou pormenor, ele ditou:
— Assim como em 1880 0 3.º centenário da morte de Camões foi o grande acontecimento nacional que acordou a Nação do seu torpor, esclarecendo a vida e a obra do imortal épico e fazendo deste facto o fulcro radioso que iluminou a consciência nacional e preparou a queda da monarquia e o advento da democracia, assim o centenário que se aproxima pode ser o pretexto para que, numa manifestação enorme, abrasada de sentimento nacional, os homens se entendam, auscultando a vontade do país e aproveitando as virtudes do povo.
"Fez-se, em 1910 uma revolução — prossegue o ilustre professor — mas os seus autores ainda não tiveram uma completa compreensão do momento histórico e uma nítida — quanto possível — visão do nosso destino.
"à sombra de Camões pode e deve iniciar-se a grande obra de engrandecimento pátrio, sem que para a elevação desse pátrio sentimento seja preciso ignorar o evoluir das sociedades, ou desconhecer todas as aspirações justas e realizações de ordem social.
"Camões é um símbolo, e a sua epopeia coloca-nos, universalmente, dentro da moderna civilização, trazendo para Portugal a glória, jamais igualada, de terem sido os portugueses os que primeiro realizaram o reconhecimento dos mundos desconhecidos, através dos mares. Tal é o significado social perante o mundo culto, tal o pensamento que em todos os portugueses deve prevalecer a propósito do quarto centenário do nascimento do homem que é e será, universal e eternamente, o maior título de orgulho e glória para Portugal.
Sobre a maneira de comemorar tal centenário, o Dr. Teófilo Braga entende que à Câmara Municipal de Lisboa cumpre dar-lhe a maior solenidade, pondo em evidência o seu aspeto moral. Pela sua parte, o ilustre professor tem à disposição do Município um trabalho, que está acabando de compor, intitulado: Camões, expressão da Raça e Nacionalidade, especialmente para ser distribuído gratuitamente pelas escolas, por instituições e indivíduos pobres, que o não puderem comprar.
Antes de encerrar, a entrevista que concedeu ao Século, o Dr. Teófilo Braga ditou-nos palavras de fé, de austera intransigência de princípios e de amor ao trabalho — daquela fé que as suas queixas dos homens não conseguem torvar, daquele trabalho que ele praticamente exemplifica, mostrando-nos, como ainda está a trabalhar na monografia sobre Camões nos capítulos sobre Romantismo da sua História da Literatura Portuguesa e na composição do romance Uriel da Costa, acerca de um judeu e livre pensador do século XVII — e tudo isto, indo a caminho dos 90 anos!
Este homem extraordinário, cujos olhos, antes da cegueira, viram florir e tombar essa ala de namorados das Letras Portuguesas, que teve vultos como Herculano, Antero, Camilo, Oliveira Martins, Ramalho, Eça e Fialho, aguarda serenamente a morte, que o encontrará no alto da cumeada que ele ergueu com as suas mãos de obreiro mental, austero sempre, com fé sempre, trabalhando sempre, fazendo desta formosa trilogia a suprema exemplificação de como deve ser engrandecida e servida a linda terra que foi berço de Camões."
Jornal "O Século", 6.01.1924
Transcrição do documento original que integra o acervo
da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada.
A imagem digital consta no Arquivo dos Presidentes do MPR,
disponível online em:
Redação: 09.04.2025.